ENSAIO DE ANGEOLOGIA

 

Como entender os anjos? Como cristão, sei que minha tradição está cheia de figuras angélicas. Temos o Arcanjo Miguel que lutou contra Lúcifer, expulsando-o do céu e que vez ou outra está em combate contra Satã. Há ainda o famoso Anjo de Javé que sempre se confunde com o próprio Deus em suas aparições. Podemos ainda lembrar do Anjo Gabriel, o mensageiro celestial ou de Rafael, um anjo de cura. Mas não para por aí, há os demônios, que são anjos que teriam seguido Lúcifer em sua revolta, sendo expulsos do céu e convertendo-se em seres de trevas. Tais anjos caídos teriam até mesmo feito filhos em mulheres humanas, gerando humanos semideuses e, quando Cristo veio ao mundo, eles se apossaram de pessoas levando-as a estados de possessões. 

Os anjos não são muito diferentes de outras entidades espirituais de religiões não-cristãs. Os anjos na mitologia judaico-cristã, ou os orixás na mitologia africana ou as divindades da mitologia greco-romana: todos parecem fazer parte de uma mesma realidade. Poderíamos, por exemplo, dizer assim que o anjo Rafael é como se fosse um outro nome para o orixá Omolu ou para o deus Asclépio, fazendo as devidas distinções entre o arquétipo universal da entidade de cura e o conteúdo cultural diverso. Há, no entanto, uma entidade especial entre as demais que podemos entender como uma figura de Cristo. Sobre Cristo, não podemos aplicar o mesmo critério de interpretação que o fazemos aos demais anjos, pois, como declara o evangelista João, Jesus é o próprio Deus. 

Todas as figuras crísticas podem, em alguma medida, serem vistas como representações de Cristo. Falamos, assim, de um “Cristo cósmico”, entendendo a revelação deste Verbo único como o Mediador de revelação entre Deus e os humanos. Cristo é aquele que se sacrifica para redenção da humanidade e do Cosmos. Exemplos desse mesmo símbolo pode ser encontrado na mitologia dos povos tupis, onde há a figura de Sumé, que após seu sacrifício, tem seu corpo transformado em alimento que salva o povo da fome. No mito grego, há o sacrifício sacramental de Dionísio-Zagreu, no qual os iniciados comem sua carne crua como forma de receber o deus em si. Há ainda diversos mitos de Heróis divinos ou semidivinos que salvam o seu povo ou derrotam o mal. 

Quando um crente põe sua fé numa entidade mágica de sua religião que o salva ou expia seus pecados, devemos entender que ali está um cristão. Cristão, não no sentido do seguidor da religião da Cristandade, mas sim na acepção daquele que se liga à figura crística tal qual representada em sua cultura. De tal modo isso ocorre, que devemos dizer que tal pessoa recebe as bençãos da redenção que Jesus Cristo conquistou na Cruz. Cristo ainda pode ser encontrado representado por figuras como Buda, Oxalá, Issa, Vishnu, Krishna, etc. Mas, é necessário afirmar que a revelação última e suprema de Deus está em Cristo Jesus, pois ele não é mais uma revelação mediata de Deus, mas o próprio Deus revelado, a saber, uma autorrevelação. 

Dado que muitas figuras angélicas são reoresentações de Cristo, é importante fazer aqui uma breve apresentação da cristologia, Diante de todas essas simbologias crísticas, cabe dizer que Cristo não é outro senão o Filho da Vida. Por Vida, entende-se Deus, quer ele seja chamado de Olorum, Brâman, Yahweh, Tao ou outro nome qualquer. Na medida em que Deus é Vida e a Vida se experimenta enquanto afeta a si mesma, ela tem de engendrar um “Self” que seja sujeito dessa experiência. Esse Self nascido da Vida é o Verbo, que sendo gerado eternamente no seio de Deus, é o Arqui-Si, a Ipseidade originária que se coloca como arquétipo de todo ego singular. Esse Si é o Primeiro Vivente, chamado no Cristianismo de Cristo, sendo ele a condição transcendental de toda vida singular que experimenta a si mesma na experiência fundamental que a Vida faz de si em seu Verbo. 

Têm-se notado, na teologia cristã, que o Anjo de Javé não é senão outro nome para Cristo em sua revelação pré-encarnada. Quando apareceu a Moisés na sarça ardente, o Anjo de Javé disse de si mesmo “Eu Sou”, expressão que será apropriada por Cristo continuamente ao longo do Evangelho de João. Cristo é o Mensageiro de Javé, por isso pode adequadamente ser chamado de "Anjo". Outro nome para Cristo é “Arcanjo Miguel”. Miguel é, como pontuam os adventistas e alguns teólogos protestantes, um nome honorífico de Cristo. Cristo é chamado de Arcanjo Miguel quando se encontra em batalha contra Satanás. Satanás não deve ser lido como uma criatura literal, mas como símbolo do mal. No Grande conflito cósmico contra o mal, Cristo é Miguel, o Arcanjo de guerra. 

Na medida em que Cristo pertence à Vida, a base de sua existência não pode ser pensada segundo categorias do mundo. Ele não é bem uma mente que subsiste independente de um corpo, na realidade, Cristo possui um corpo, mas não à maneira do mundo, mas sim uma carne à maneira da vida. São João escreve que o Verbo se fez carne. Por carne, não devemos conceber uma matéria inerte estranha que teria se unido ao divino, mas sim como a Arqui-carne que vem a si da própria substância da Vida e é nessa carne que Cristo pode se experimentar afetivamente a partir do Arqui-pathos de sua carnalidade. Então, não será apropriado aqui, evocarmos a questão da dependência neurocientífica da mente, à qual será preciso recorrer mais adiante. 

Antes de falarmos dos anjos, em geral, é preciso falar da Entidade espiritual feminina chamada Grande Mãe. A Grande Mãe tem recebido diferentes nomes, tais como Iemanjá, Ísis, Virgem Maria, entre outros. Quando considerada em toda sua força mágica, podemos entender a Grande Mãe como outro nome para Deus ou para a Anima divina. Fomos acostumados, dado a nossa cultura patriarcal, a pensar em Deus apenas como Pai, de modo que separamos toda figura feminina de Deus e a projetamos em entidades femininas que seriam menos do que divinas. Mas, devemos lembrar de quando o profeta Isaías diz que Deus é como uma Mãe que não esquece os seus filhos, além de reafirmar o princípio teológico de que Deus não possui gênero, podendo tanto ser representado por uma figura masculina quanto feminina. 

Considerado até que ponto certas entidades angélicas podem representar o próprio Deus, devemos tratar agora dos anjos no sentido usual da palavra. Os anjos consistem, conforme o mito, em entidades intermediárias, que não são identificadas nem com o Deus único nem com os humanos naturais. São entidades que, como considerado, receberam diferentes nomes a depender de uma cultura ou religião. Até mesmo os Santos no Catolicismo, embora a princípio se referissem a pessoas que viveram na terra, tornaram-se nomes para essas entidades. Se são nomes de uma mesma realidade, embora representados em formas distintas e específicas de cada cultura, todos são igualmente válidos. Rogar o auxílio de um anjo da Bíblia ou pedir a proteção de um Orixá, são de mesmo valor simbólico, e não há superioridade entre um mito e outro. 

 Do ponto de vista natural, no entanto, não devemos achar que essas entidades sejam seres extrapsíquicos, elas são, na verdade, como constatou Carl Gustav Jungsímbolos de elementos da psique humana. Quem percebeu isso de forma interessente foi a Astrologia quando identificou os deuses gregos que nomeiam os planetas com aspectos de personalidade. Isso não diminui o poder mágico dessas entidades, só os reforça por dar a eles uma base concreta e colocando ao seu dispor toda a força energética da psique. Não devemos ignorar, pois, que os anjos são protetores que nos guardam, ou que um orixá possa trazer a cura para uma doença: eles podem fazê-lo.  

Negar a existência extrapsíquica dessas entidades mágicas em nada diminui sua realidade efetiva. O mesmo se deverá dizer sobre entidades da sombra, como os demônios que em nós habitam. Todas essas entidades podem até mesmo se apoderar de nosso ego, como em possessões, incorporações ou êxtases proféticos. O princípio básico para não assumir a existência extrapsíquica de tais seres é que o homem racional moderno não pode mais assentir com a ideia de inteligências incorpóres quando as neurociências cada vez mais revelam que processos mentais somente o são na medida em que emergem da atividade cerebral. 

Considerando a questão da irrealidade extramental dos anjos e demônios, podemos incluir ainda em consideração os espíritos dos mortos ou de seres ancestrais. Tais espíritos, novamente, devem ser entendidos como possuindo realidade psíquica. Na medida em que tais elementos da psique podem se apropriar do ego, é natural que encontremos na prática mediúnica o fenômeno das incorporações. Dado o caráter coletivo da psique, ainda que não seja claro como, podemos ver num fenômeno desse tipo a presença de um morto com sua voz, caligrafia ou coisas similares. Mas não devemos supor que o espírito desse morto retornou de algum reino espiritual. 

Parece cada vez mais claro que a vida mental existe sempre em um corpo. É na carne que a vida sempre se realiza, que a alma experimenta a si mesma, alma que é a prórpia carne patética irredutível à matéria inerte. Todavia, parece muito difícil ainda sustentar que nossa alma é uma substância incorpórea independente de sua existência concreta. Isso cria tantas dificuldades filosóficas, que não parece uma boa posição. Teríamos que depender da ideia de almas ou espíritos incorpóreos para afirmar a existência extramental dos anjos, demônios, espírito de mortos ou outras entidades espirituais. Todavia, a própria Bíblia, ou pelo menos algumas de suas partes, parece negar a realidade de entidades incorpóreas. A intuição bíblica é que a morte é o perecimento de toda atividade mental, a cessação do louvor e a aniquilação da consciência. Embora possamos admitir que outras partes da Bíblia apresentem uma visão diferente, ecoa-se pelas Escrituras pré-helenisticas a expressão hebreia da morte como aniquilamento. 

 Na verdade, o que pode fazer mais sentido é pensar na alma como o elemento afetivo do corpo. Aliás, basta pensarmos na etimologia das noções de alma e espírito. Alma vem de "anima" e se relaciona com o calor do corpo vivo. Espírito traduz "ruach" e "pneuma", que significam sopro e respiração. Quando o corpo morre, ele perde o calor e a respiração. Mas o calor da vida da carne e a respiração que anima o corpo não existem por si mesmos, são propriedades, não substâncias.  

Assim, a morte pode aparecer como semelhante ao desligar de uma lâmpada, sua luz e calor simplesmente cessam. A luz não persiste sem a lâmpada ligada. Pensemos numa vela, se apagamos sua chama, ela simplesmente se esvai. Mas o que significará isso? Bem, pode querer dizer que o "após a morte" é como o "antes de nascer". Assim como não éramos antes de nascer, não seremos depois que morrermos. A morte é o nada e não há nada no nada, nem antes nem depois, logo, para quem morre, não existe "após a morte". No entanto, dado que a morte é um mistério, não podemos também ser dogmáticos sobre isso. 

A fé cristã apresenta a intuição radical de que seremos ressuscitados para viver novamente no planeta Terra, que será restaurado a uma condição ecológica paradisíaca. Este é um elemento fundamental da fé cristã. Sendo assim, o Cristianismo coloca suas esperanças, não numa realidade superior espiritual, mas na concretização material da existência em nosso mundo. A mesma Vida que gerou nossos egos singulares através da experiência que ela mesma fez de si na Ipseidade original, irá trazer cada si vivente de novo à vida. Isso se dá porque há uma única Vida que vive em cada vivente e essa Vida absoluta não morre nem pode morrer. 

A realidade extramental dos anjos não pode ser colocada pois uma teologia que se pretenda livre da influência da metafísica, isto é, uma teologia comprometida com a verdade, deve empenhar-se deliberadamente por se ater somente àquilo que se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo. Se uma série de infinidades de critaturas espirituais vêm habitar nosso mundo tornando-o encantando, é porque esse mundo em que eles habitam é nosso mundo, não mais o mundo da exterioridade, mas o da imanência radical de nossa vida psíquica.

Podemos concluir, pois, com a intuição ou hipótese aberta, de que os anjos são símbolos de elementos da psique humana. A realidade de tais anjos é tal que podemos admitir neles a presença da força protetora e dos poderes curativos do inconsciente. Não servirá muito a uma angeologia, ainda por ser construída, especular sobre as hierarquias angélicas, o que historicamente pode ter sido um artifício humano para justificar a hierarquia do clero romano. É preciso também dizer que em nós há luz e sombra, logo, habitam em nós tanto as forças ocultas dos seres luminosos quanto dos demônios. A espiritualidade sadia, cabe dizer, está em acolher de maneira integrada ambos os aspectos de nossa psique. 


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