CRÍTICA DA FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA (TEXTO DE MICHEL HENRY)

 

Se considerarmos que não há diferença entre a filosofia do ser e a filosofia da consciência, por que Heidegger achou por bem dirigir uma crítica radical contra esta última, que tem sido constantemente retomada? Indicamos o motivo da crítica: ela reside na vontade de não deixar a essência decair ao alcance da determinação que nela encontra o seu fundamento. A rejeição dos conceitos tradicionais de sujeito, subjetividade, consciência, razão, até mesmo de "pessoa"; a objeção feita incessantemente contra a legitimidade de seu emprego e segundo a qual a realidade que designam permanece sempre de fato inquestionável em seu ser significa a transcendência do ser em relação aos elementos pensados ​​como princípio da fenomenalidade ou, mais estritamente, do conhecimento. Pois o ser está além da determinação estabelecida como princípio, e neste além é onde a determinação realmente encontra o fundamento de seu ser.

Por que a essência não pode ser mantida na distância original onde reside? Por que o Dasein não pode ser apreendido na pureza de seu significado ontológico radical como a própria essência da transcendência? Porque seu ser é inevitavelmente compreendido no contexto do que acontece nele. “Ser-em”, que significa a ekstase original de ser, “é desnaturada”, porque o Dasein o entende à luz do ente que se produz graças a esse Ser-em . Ao compreender o In-Sein (Ser-em) à luz do que nele é produzido, o Dasein se entende desta maneira: é entendido como um ente, e a estrutura original de Ser-no-mundo torna-se a relação que existe entre esse ente, o Dasein, e o ente cujo modo de ser não o é em conformidade ao modo de ser do Dasein. Esses dois entes, cujo ser é entendido a partir do ente intramundano, são chamadas de sujeito e objeto, e nessa relação que a teoria do conhecimento busca seu fundamento.  

Essa mesma relação que se institui entre duas realidades dadas é entendida por sua vez como uma realidade dada. O que Heidegger rejeita é a degradação da essência da manifestação a uma realidade de ordem ôntica; é a compreensão do elemento ontológico formal do conhecimento à luz dessa realidade. “A consciência natural poderia ser chamada de consciência ôntica na medida em que se dirige diretamente ao objeto como um ente e ao seu conhecimento desse objeto como algo que também é um ente”. A filosofia da consciência é desafiada na medida em que é uma tese da consciência natural. Como tal, com efeito, faz uma omissão fundamental.

A partir do momento em que se estabelece como ente, o conhecimento pressupõe o ser. “A consciência natural imediatamente coloca diante de si o seu algo representado e seu ato de se representar como entes, sem considerar o ser que, ao fazer isso, já se representa”. Por isso, esse conhecimento posto como ente (e que se chama precisamente consciência, sujeito, subjetividade, razão ou pessoa) deve ser questionado sobre o seu ser. Embora essa questão do ser não tenha elevado ao sujeito do conhecimento - simplesmente assimilado a algo que é - a pretensão deste último de desempenhar o papel de um princípio na problemática apenas atesta o esquecimento do problema ontológico. A solidariedade com este esquecimento é a queda da essência na determinação que a substitui, quando na realidade esta se refere àquela. A existência é confundida com algo que existe.

Pensar a existência em sua verdade é entender, ao contrário, a existência como verdade. “A verdade da existência” é obtida no esforço pelo qual o pensamento cessa de compreender a existência de algo diferente de si mesmo. “O Dasein”, diz Heidegger, “pode ser entendido a partir do 'mundo' ou dos outros ou de seu poder-ser mais próprio”. A compreensão do Dasein a partir de seu poder-ser mais próprio significa para o Dasein uma compreensão de si mesmo a partir de si mesmo: é a compreensão de si mesmo a partir da essência como essência.

A preservação da verdade da existência é o objetivo último das grandes críticas feitas pelo heideggerianismo, e especialmente das críticas dirigidas contra a ontologia cartesiana e contra a concepção tradicional de verdade. A ontologia cartesiana resulta em uma alteração ou mesmo um completo esquecimento da essência, sobre o pano de fundo de sua compreensão a partir do ente que nela e por ela se produz. Além disso, o ente cujo ser guia indevidamente a compreensão do fenômeno ontológico do mundo nem mesmo é o ente que ocorre em primeiro lugar para nós neste mundo. Descartes, de fato, não retém do ente, enquanto constituinte de seu ser, mais do que o que lhe é acessível por meio do conhecimento matemático. Tal conhecimento tem como correlato um ser-simplesmente-dado. O ser-simplesmente-dado (Standige Vorhandenheit) é o caráter de ser do ente matemático. O que possui a característica de ser-simplesmente-dado é a substância.

A ideia de substância, portanto, encontra sua origem na estrutura específica de um ente específico. Partindo dessa estrutura determinada, pensada sob o nome de substância, Descartes interpreta não só e acertadamente o ser do ente matemático, mas também e indevidamente o ser do ente intramundano em geral (e assim surge a ideia de uma natureza matemática , que a partir de então irá governar a concepção ocidental da natureza e zelará definitivamente pelo seu ser originário) e, por fim, o ser do próprio mundo. Não apenas o mundo, como meio do ente intramundano, se confunde com o espaço, mas o ser do espaço também é interpretado como substância. A doutrina da res extensa, que vale para uma interpretação filosófica do ser originário do mundo, ou seja , da essência, é assim construída a partir do ser determinado do ente que se oferece ao conhecimento matemático. E não só esse conhecimento é privilegiado, como ele é o protótipo da intellectio [intelecção], arbitrariamente na medida em que é dada como único modo válido de acesso ao ser do ente (a sensatio [sensação] não atinge esse ser), mas seu ser, por sua vez, é interpretado a partir da estrutura ontológica determinada do ente matemático, isto é, da permanência substancial de uma dada realidade. 

“Descartes”, escreve Heidegger, “compreende o ser do Dasein, a cuja constituição fundamental pertence o ser-no-mundo, da mesma forma que o ser da res extensa: como substância”. O Dasein, no entanto,  não é senão o mundo em sua mundanidade pura. A “res cogitans” [substância pensante] e a "res extensa" [substância extensa] são dois títulos equivalentes em que se expressa a mesma decadência (à luz da ideia de substância, ou seja, do ente matemático) da mesma essência (a essência ontológica da presença). 

O dualismo cartesiano é uma alteração do monismo ontológico. A crítica da concepção tradicional da verdade como um acordo entre representação e objeto tem o mesmo significado. A representação é declarada em uma proposição. A proposição é uma realidade – ela carrega o utensílio, mantendo uma relação com o ente do qual enuncia algo. Quando essa relação é adequada, quando há concordância entre a proposição (por exemplo, a rosa é perfumada) e o ente (a fragrância da rosa), a proposição é verdadeira; por outro lado, se a relação é inadequada (se a rosa não cheira, se for uma rosa artificial, etc.), a proposição é falsa. Desse modo, a representação, que, como abertura e descoberta do ser, é a essência, cai no rol da proposição, que, como proposição expressa, é uma realidade intramundana (ideal ou não). A relação transcendental, que é a abertura originária da representação e da existência, é preservada pela proposição, como proposição expressa, na forma da relação que mantém com o ente ao qual corresponde.

Essa mesma relação de conformidade ou não conformidade entre duas realidades dadas é entendida porque está inserida em uma delas - a proposição - como uma realidade dada. A natureza dessa relação, na medida em que é dada, resulta, portanto, da interpretação do ser da relação transcendental original de transcendência à luz da proposição sendo dada como uma proposição expressa. A concordância que, na filosofia clássica, define "verdade" nada mais é do que o declínio da verdade ontológica original da existência na medida em que essa verdade reside na abertura e descoberta do ser. A mesma decadência também aparece nas teses kantianas sobre a crítica do idealismo problemático. A própria ideia de uma demonstração da realidade do mundo externo implica a ignorância da essência original do mundo como tal.

Isso se confunde com a totalidade da realidade intramundana. Na verdade, esta último é o que se busca encontrar, mostrando que a vida psicológica e interior da consciência só é possível em sua conexão com os objetos externos, cuja ordem objetiva constitui o único fundamento atribuível tanto à unidade quanto à distinção dos acontecimentos interiores. As representações subjetivas, identificadas com esses eventos, recebem, como eles, o sentido de formar uma realidade justaposta à realidade ôntica externa. Quanto à relação que une essas duas realidades dadas e que dá unidade à série subjetiva, ela não é, por sua vez, senão uma realidade dada.

O significado da crítica heideggeriana da filosofia da consciência, portanto, consiste na rejeição do declínio da essência à realidade ôntica, declínio que se realiza com a compreensão do ser da essência a partir do ser determinado do ente. Uma vez que o problema ontológico deve ser apreendido em sua pureza, não se trata de saber “como o sujeito se dirige a um objeto”, mas “o que torna ontologicamente possível que o ente possa sobrevir no mundo e ser objetivado como superveniente”. A resposta, diz Heidegger, está na “transcendência do mundo fundada de forma ekstática e horizontal”. É a transcendência, não o sujeito, que é a essência. A essência, que a filosofia da consciência pensava ou pelo menos apontava sob o nome de sujeito, era, porém, a própria essência da transcendência. A crítica heideggeriana tem um significado ontológico na medida em que tenta pensar a essência em sua pureza. Justamente por isso, também podemos dizer que não possui de fato nenhum significado ontológico. Na verdade, ela não está situada no próprio plano ontológico, mas em sua fronteira, que de alguma forma trabalha para definir e se esforça para situar com rigor. O que está em questão não é a estrutura interna da essência da manifestação; o que se rejeita é uma compreensão, imprópria por ser de origem ôntica, dessa única essência da manifestação. 

O elemento ontológico deve ser preservado contra qualquer contribuição externa de ordem ôntica; em si, permanecendo o que era quando ainda estava encoberto e escondido sob essa contribuição. A filosofia do ser elabora a essência subjacente às filosofias anteriores; faz com que seja objeto de uma investigação que é finalmente compreendida no rigor de seu esboço ontológico. Trata-se de pensar a exterioridade em sua pureza, ao invés de inseri-la em um "sujeito" do qual ela se torna propriedade interna.

Mas a essência da manifestação reside em todos os casos nesta exterioridade como tal. A purificação ontológica dos princípios ainda pensados ​​como realidades ou processos de ordem ôntica: tal é o sentido da crítica à filosofia da consciência. Porém, a elucidação purificadora da essência nada mais faz do que mostrar sua presença sob os próprios princípios que devem ser rejeitados. Contra o pano de fundo dessa essência comum e da identidade de sua estrutura interna última, ocorre o intercâmbio de temas entre a filosofia da consciência e a filosofia do ser. A inserção dos componentes eidéticos do ser e de seu fundo mais essencial no princípio subjetivo da consciência não teria sido possível se esse princípio subjetivo nem sempre tivesse sido pensado como a condição da objetividade. A identificação do nada com a consciência ou com o homem é sem dúvida absurda, pois o nada, que é a origem e a potência da transcendência, não pode como tal se encerrar em nenhuma realidade; no entanto, ele testemunha a permanência das últimas pressuposições ontológicas do monismo. Por isso, deve-se entender que a inserção ilegítima do fundo essencial do ser na consciência realizada como região sui generis do ser não pode de forma alguma ser chamada de “subjetivação”.

Para que se possa falar de uma “subjetivação”, é necessário se indique no que consiste tal subejetivação. Mais precisamente, essa subjetivação teria que ter um significado ontológico e, para isso, a subjetividade teria que ser uma essência. A transformação que contribui para os temas norteadores da ontologia heideggeriana ao serem retomados dentro de uma filosofia do cogito, não é essencial enquanto o ser da consciência continua sendo o próprio Ser identificado em seu fundo com o Nada. Enquanto a alteração sofrida pela essência consistir em uma queda dela no que de fato é ainda uma realidade de ordem ôntica, essa alteração constitui uma “entização” da essência, não uma modificação radical de seu ser íntimo e, ainda menos, a posição de outra essência. Se a entização indevidamente tomada ou dada como uma “subjetivação” nada mais é do que a inserção da essência da objetividade dentro da “cápsula” de uma subjetividade cujo ser consiste precisamente nessa própria essência, tal entização só é atribuível à consciência natural e não promove, de fato, em seu resultado qualquer novo modo de manifestação ou revelação e, como tal, não possui qualquer significado ontológico no sentido forte.

Já é alguma coisa, claro, manter a essência em sua transcendência radical em relação a todos os seres, se é precisamente nessa transcendência que reside a essência. O mais rigoroso, entretanto, é o entendimento interno da essência como o fundamento nadificante do ser; tanto mais urgente é a exigência de mantê-lo, contra o pano de fundo dessa nadificação que está nele, em sua transcendência com respeito a todos os entes; tanto mais incompreensível é também a equação explícita da essência com uma realidade ôntica, na afirmação paradoxal, mas constantemente formulada , segundo a qual “Dasein” é um ente.


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HENRY, Michel. La esencia de la manifestación. Traducción anotada de Miguel Üarcía-Baró y Mercedes Uarte. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015, §12.


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