EU SOU A VERDADE - MICHEL HENRY (RESUMO)


O que se segue é um resumo do livro Eu Sou a Verdade: Por uma filosofia do Cristianismo do fenomenólogo francês, Michel Henry. Neste livro, Michel Henry trabalha a noção de verdade no Cristianismo, o resumo se divide em quatro partes, a primeira considera a concepção de vida e verdade de acordo com o Cristianismo, a segunda opera uma fenomenologia de Cristo, considerando o aparecimento de Cristo enquanto Verbo gerado eternamente no seio da Vida, a terceira parte considera o humano enquanto Filho de Deus e a quarta parte trata da Ética cristã e os paradoxos do Cristianismo que decorrem dessa ética. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

I. VERDADE E VIDA SEGUNDO O CRISTIANISMO 

Verdade pode ser entendida como o mostrar de algo que aparece. Podemos falar da verdade em dois sentidos: (i) verdade do mundo: a manifestação dos entes no horizonte do mundo; (ii) verdade da vida: a autorrevelação da Vida. Na verdade do mundo, o mostrar difere daquilo que se mostra enquanto na verdade da vida o mostrar e o mostrado se identificam. 
A verdade do Cristianismo difere por essência da verdade do mundo, pois o Cristianismo trata da doação em partilha aos homens da autorrevelação de Deus, isto é, da Vida. A autorrevelação da vida é sua autofruição primordial que define a essência do viver e, assim, de Deus mesmo. De acordo com o Cristianismo, Deus é Amor, desse modo, o Amor é a autorrevelação de Deus compreendida em sua essência fenomenológica patética. 
A concepção de Vida aqui apresentada precisa ser diferenciada de outras concepções sobre a vida, entre elas podemos citar: (i) a vida segundo a biologia: que reduz a vida a processos materiais; (ii) a vida segundo a visão heideggeriana: que oscila entre a confusão do vivente com um ente tornado manifesto no ser do mundo e a definição da fenomenalidade própria do vivente pela inserção nele de uma forma decaída desse mesmo ser no mundo; (iii) a vida segundo a visão schopenhaueriana : que faz da vida um princípio metafísico do universo, despojando-a da capacidade de se autorrevelar 
Para o Cristianismo, a Verdade é Vida. A revelação primordial que arranca tudo do nada dando-lhe o aparecer e, assim, o ser, revela-se antes de tudo a si mesma num abraço de antes das coisas, de antes do mundo, e que não deve nada a este, nesta autofruição absoluta que é a Vida. A partir da vida, o Cristianismo introduz uma concepção inteiramente nova do humano. Essa concepção envolve duas teses: (i) a vida que não diz palavra sabe tudo e isso tanto no humano quanto em Deus; (ii) a vida é mais que o humano, mais que o vivente e isso se aplica também a Deus. 
A relação da vida com o vivente é o tema central do Cristianismo. Tal relação se chama do ponto de vista da vida, geração e, do ponto de vista do vivente, nascimento. A vida que é capaz de engendrar a si mesma, aquela que o Cristianismo chama de Deus, é a Vida fenomenológica absoluta. Enquanto a relação da vida com o vivente opera no interior de Deus mesmo, ela se produz como geração do Primeiro Vivente no seio da autogeração da vida, esse Primeiro Vivente gerado na vida divina é o Filho primogênito, o Filho de Deus. A Vida absoluta, enquanto se engendra a si mesma e enquanto, fazendo-o, engendra o Primeiro Vivente, o Cristianismo a chama de Pai. Podemos falar da autogeração da Vida em dois sentidos: (i) autogeração da Vida absoluta como geração do Primeiro Vivente: a geração do Arqui-Filho transcendental; (ii) a autogeração da Vida absoluta como geração do humano transcendental: a geração do humano como Filho de Deus. 
Para o Cristianismo, não existe senão uma só Vida, a única essência de que tudo vive. Deus é Vida e essa vida não pode ser provada racionalmente porque isso seria querer provar a existência de Deus segundo a verdade do mundo, Deus ou a Vida não é nada a que possa dar acesso nosso pensamento. A Vida é a autorrevelação, nela é ela mesma que realiza a revelação e é ela mesma que é revelada, essa autorrevelação da Vida é o mesmo que a Revelação de Deus. 
A Vida não “é”, ela advém e não cessa de advir, a vida é um automovimento que se autoexperimenta e não cessa de se autoexperimentar em seu próprio movimento. O movimento pelo qual a vida não cessa de vir a si e assim à fruição de si, tal é o processo em que consiste a essência da vida, sua autogeração. A vida se autogera na medida em que ela se impele à fenomenalidade em forma de autorrevelação. No experimentar-se a si mesma da vida há uma identidade entre experimentador e experimentado, essa identidade é a essência original da Ipseidade. 

II. FENOMENOLOGIA DE CRISTO 

A Ipseidade que a vida engendra é algo efetivo, é um Si singular que se estreita a si mesmo, que se afeta a si mesmo, que se experimenta a si mesmo e frui de si. Este Si singular em que a vida se estreita a si mesma, é o Primeiro Vivente. O Pai engendra em si eternamente o Filho, o Primeiro Vivente, Aquele na Ipseidade original e essencial de que o Pai se experimenta a si mesmo.  
Dado que o processo de autogeração da Vida não pode cumprir-se sem gerar em si esse Filho, o Filho é tão antigo quanto o Pai, como Ele, o Filho se encontra no começo, por isso o Filho pode ser chamado de Arqui-Filho. Chamamos, assim, de Arquinascimento, o processo de autorrevelação da Vida que engendra em si o Primeiro Vivente enquanto Arqui-Filho. A esse Arqui-Filho e seu Arquinascimento podemos qualificá-los como transcendentais, no sentido de algo que não se dá como um processo natural ou mundano. Assim, podemos falar, em relação ao Filho, de um Arquinascimento transcendental.
Cristo é esse Arqui-Filho de Deus. A fenomenologia de Cristo diz respeito à questão do aparecimento de Cristo. Cristo é a Verdade e a Vida. Ele próprio é esta Verdade original que é a Vida. Cristo rejeita toda genealogia natural porque ele é filho da Vida em sua Arquigeração transcendentalA interioridade recíproca entre o Pai e o Filho, a saber, a Arquigeração do Filho como autogeração do Pai, significa fenomenologicamente que cada um não tem sua glória senão do outro, cumprindo-se a autorrevelação do Verbo, a qual, todavia, não é senão a autorrevelação da Vida absoluta. 

III. O HUMANO ENQUANTO FILHO DE DEUS 

A afirmação central do Cristianismo no que diz respeito ao ser-humano é que ele é Filho de Deus. Essa afirmação impede que se compreenda o humano como um ser natural, mas ela também impede que se compreenda do ponto de vista transcendental, o humano como um ser cujo mundo constituiria o horizonte de todas as suas experiências. Tal como Cristo, o humano não pertence ao mundo, no sentido fenomenológico de que o aparecer de que é feita sua carne fenomenológica, que constitui sua verdadeira essência, não é o aparecer do mundo. 
O que vale para o Arqui-Filho vale para o humano enquanto Filho de Deus, e o que vale para eles é a essência da vida, ou seja, o próprio Deus. Deus deu ao humano sua própria essência, criou-o à sua imagem, dando-lhe a condição de vivente. Assim, a criação do humano à imagem de Deus(i) o humano não é precisamente criado, e esta é a razão pela qual ele não é um ser do mundo; (iio humano não é uma imagem, pois não há imagem senão no mundo. 
A vida se autoengendra como Eu transcendental vivente. É a autogeração da Vida absoluta no nascimento transcendental que faz do Eu o humano transcendental cristão. A Vida atravessa cada um dos que ela engendra, de tal modo que não há nada nele que não seja vivente, nada tampouco que não contenha em si esta essência eterna da Vida. 
O próprio da vida é que ela se afeta a si mesma, isto é, que ela se autoafeta. Podemos falar da autoafecção da vida em um sentido forte e em um sentido fraco: (i) conceito forte de autoafecção: a Vida que se autoafeta absolutamente, o que se dá em Deus; (ii) conceito fraco de autoafecção: a vida que se autoafeta sem ser fonte dessa autoafecção, o que e dá no humano. Enquanto Filho, o humano é predestinado, e sua destinação está inscrita na relação recíproca dos conceitos fracos e fortes de sua autoafecção, em relação a esses dois conceitos, pode-se falar em uma autoafecção naturante (autafecção em sentido forte) e autoafecção naturada (autoafecção em sentido fraco). A predestinação significa que o humano é destinado a ser um vivente gerado na autogeração da Vida absoluta, vivendo somente desta, não podendo cumprir sua própria essência senão na essência desta vida absoluta. 
O Si singular se autoafeta na medida em que a Vida absoluta se autoafeta nele, esse Si singular apresenta uma passividade. Passivo, o Si o é antes de tudo com respeito ao processo eterno de autoafecção da Vida que se engendra e não cessa de engendrá-lo. O modo específico de passividade do Si singular, enquanto autoafetado em sua autoafecção absoluta da Vida, engendra nela o conjunto de suas modalidades essenciais e, como tais, patéticas. Entre essas modalidades patéticas está a angústia, a tonalidade afetiva que o Si experimenta sem nada poder fazer quanto a ela, um querer escapar de si e não poder fazê-lo. 
Cristo, de acordo com o Cristianismo, é o mediador entre Deus e os humanos. A relação do humano transcendental com Deus é mediada por Cristo, o humano não é Filho de Deus senão no Arqui-Filho, o humano é Filho no Filho. O Arqui-Filho precede todos os Filhos como a essência preexistente e preestabelecida, sem a qual não poderia haver um Filho, isto é, um Si vivente. O humano só pode ser Filho de Deus enquanto Filho no Filho. 
Cristo é a condição transcendental de todo eu possível, o próprio eu compreendido como eu transcendental vivente, isto é, portador da essência da Vida. Nosso nascimento transcendental é referido a cristo como nascimento conjunto de um eu e de um vivente, de um eu que encerra em si a vida. O eu só pode ser quem ele é através da Ipseidade original da Vida. Sem esta Ipseidade que o precede, nenhum eu jamais seria. A geração do Arqui-Filho na autogeração da Vida absoluta se reproduz de certo modo em cada nascimento transcendental na medida em que esta, uma só e mesma Vida autoexperimentando-se em sua Ipseidade original e por ela, dá nascimento a tantos eus irredutivelmente diferentes e novos. 
Os múltiplos filhos o são no Filho, e essa é a razão pela qual eles não serão salvos senão identificando-se com esse Filho, que é identificado com o Pai no seio de sua interioridade recíproca. É esta dupla identificação, o nascimento eterno do Filho e o nascimento dos filhos no Filho, o que constitui o fundamento da salvação cristã. Assim, é justamente a condição do humano enquanto Filho que permite a sua salvação 
“Eu” quer dizer “Eu Posso”. A essência do Eu está no seu poder, Eu quer dizer Eu Posso exercer cada um dos poderes que o eu encontra em si. A fonte de todo poder consiste no Si do Arqui-Filho, isto é, na Ipseidade original da Vida absoluta. Toda e qualquer possibilidade de poder implica que este poder esteja em posse de si mesmo, dado a si mesmo na Ipseidade original da vida. É por ser um Eu Posso, que o Eu é livre, a liberdade do eu significa que o eu é livre para exercer cada um de seus poderes. 
No entanto, embora o eu receba seu poder da Ipseidade original da vida, ele se ilude considerando-se a fonte e origem de seus poderes. Essa ilusão podemos chamar de ilusão transcendental do eu, que consiste no esquecimento pelo humano de sua condição de Filho. O sistema em que o eu considera a si mesmo a fonte última do seus poderes chama-se egoísmo. 
A condição de Filho faz aparecer três relações(i) a relação do eu consigo mesmo; (ii) a relação do eu com a Vida e (iiia relação da Vida consigo mesma. Isso se dá porque o eu não se relaciona consigo senão enquanto se relaciona com a Vida e não se relaciona com a Vida senão enquanto a Vida se relaciona consigo mesmo. Este relacionamento, nos três casos, extrai sua essência da Vida: do Imemorial. O Imemorial está no já absoluto da fruição autárquica da Vida, o Arqui-Antigo que se furta a todo e qualquer pensamento, sempre já esquecido num Arqui-Esquecimento. 

IV. ÉTICA CRISTà

A autotransformação da vida querida por ela, que consiste num fazer e que reconduz à sua essência verdadeira, é a ética cristã. A ética cristã consiste em fazer a vontade do Pai. Fazer a vontade do Pai designa o modo de vida em que a vida do Si se cumpre de tal modo, que o que se cumpre nela doravante é a Vida absoluta segundo a sua essência. Fazer a vontade do Pai é deixar a relação consigo que une o Si singular a si mesmo cumprir-se como relação consigo da Vida absoluta, é para o Si vivente deixar a vida cumprir-se nele como a Vida mesma de Deus. 
A ética cristã tem por objetivo permitir ao humano ultrapassar o esquecimento de sua condição de Filho a fim de reencontrar, através desta, a vida absoluta em que nasceu. Isso se dá por meio de um agir que é o segundo nascimento. O humano é um eu transcendental invisível, é este eu que age, esse eu que age é um corpo que age, um corpo transcendental invisível. A ação é invisível porque é ação da vida invisível, isto é, de Deus. 
A ética cristã está em contraste com a Lei, que é impotente para produzir o agir que ela prescreve. Por isso, no Cristianismo, a antiga Lei é substituída pelo Mandamento do amor. O amor de Deus é o único mandamento da ética. O Mandamento é um Mandamento de amor porque a Vida é amor. A Vida é amor porque se experimenta a si mesma infinitamente e eternamente. Porque é Vida, Deus é amor. 
A ética cristã nos coloca diante de alguns paradoxos, que podemos chamar de paradoxos do Cristianismo, entre eles podemos colocar: 
(i) Crítica das obras: o humano pode se salvar através de suas próprias obras o humano deve sua salvação a uma graça arbitrária de Deus: 
A questão de saber se o humano pode se salvar por suas obras é estranha ao Cristianismo, pois o Cristianismo concebe o humano, não como um sujeito autônomo capaz de agir por si mesmo. Para o Cristianismo, o humano recebe sua possibilidade de agir da vida absoluta. 
(ii) Duplicidade do aparecer: as coisas aparecem segundo o modo de aparecer da Vida X as coisas aparecem segundo o modo de aparecer do mundo: 
Para o Cristianismo, há um duplo aparecer, é porque o modo de aparecer é duplo que o que aparece, ainda que seja o mesmo, aparece, todavia, de dois modos diferentes, por um aspecto duplo. 
(iii) Estrutura antinômica da vida: a vida é um sofrer a si mesma X a vida é fruição de si, um alegrar a si mesma: 
O Cristianismo entende que, na medida em que, no sofrer-se a si mesmo de sua Ipseidade e no sofrimento que lhe vem do caráter inexorável desse sofrer, o eu se experimenta a si mesmo e faz experiência de si, quando é posto em posse de si, ele é a fruição, é a Alegria. Quanto mais forte é o sofrimento em que, lançando em si, entregue a si, oprimido por esse fardo que ele é para si mesmo e do qual ele não pode descarregar-se, ele se experimenta a si mesmo no sofrer desse sofrer-se a si mesmo, mais forte é esta provação, mais violento o estreitamento em que se estreita e toma posse de si e frui de si, mais forte é a alegria. 
(iv) Diferença entre vida e vivente: a vida que se experimenta a si mesma é a Vida absoluta X é o eu experimenta-se a si mesmo: 
eu se ilude (ilusão transcendental do eu) tomando o prazer de experimentar a si mesmo como vindo dele mesmo. No entanto, há uma diferença patética entre a Vida absoluta que se dá a si mesma na hiperotência de sua autogeração e a vida do eu dada a ele mesmo sem tê-lo querido, sempre já dado a ele mesmo sem nunca ter tido o poder de se dar a si e, assim, de se autoengendrar. 
(v) Poder das Escrituras: as palavras das Escrituras manifestas na Lei são impotentes e estranhas à vida X as palavras da Escritura são vivas e eficazes: 
Para o Cristianismo, existe outra palavra além da que falam os humanos, esta outra palavra que fala diferentemente da palavra humana é a Palavra de Deus. A Palavra de Deus é a Palavra da Vida. Enquanto a palavra do mundo, a palavra estudada pelas teorias da linguagem, é impotente, a Palavra de Deus é a Vida fenomenológica absoluta captada no processo hiperpoderoso de sua autogeração enquanto sua autorrevelação. Não é a palavra das Escrituras que nos permite ouvir a Palavra da Vida, é a Palavra da Vida que, engendrando-nos a cada instante, fazendo de nós Filhos, que revela, em sua própria verdade, a verdade que reconhece e dá testemunho a palavra das Escrituras. 



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