10 FALÁCIAS DA INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
O objetivo deste texto consiste em apresentar 10 erros hermenêuticos comuns na leitura da Bíblia. São erros que precisam ser evitados para uma correta interpretação da Bíblia de um ponto de vista secular (histórico-crítico), isto é, uma interpretação que busca analisar o sentido de um texto bíblico à luz de seu contexto histórico sem partir de pressupostos ou viés religiosos. Usei o termo falácia de um modo um tanto informal para falar de “falácias hermenêuticas” no sentido de erros metodológicos na interpretação da Bíblia. São 10 esses erros - segue uma lista com cada um deles e exemplos:
(1) Falácia do Plágio Mítico
Essa
falácia consiste em assumir que similaridades entre narrativas bíblicas e mitos
de outras culturas implicam que a narrativa bíblica é necessariamente uma
cópia, plágio ou falsificação, ignorando o contexto cultural, teológico e
literário único da Bíblia. Na verdade, quando a Bíblia apresenta similaridades
com outros mitos, ela só está usando o material de seu contexto de produção
para construir suas próprias narrativas. Geralmente, o uso que a Bíblia faz
desses mitos é crítica, de modo que é mais correto dizer que a Bíblia
ressignifica e responde criticamente a esses mitos.
Por
exemplo, alguns associam a narrativa do Éden com o mito mesopotâmico de Enkidu
e Ninhursag, onde há um jardim, árvores e uma serpente. Há
similaridades entre essas duas narrativas, mas também muitas diferenças. Por
exemplo, enquanto o pecado de Enkidu envolve sexo, o pecado de Adão e
Eva tem mais a ver com a desobediência. Ignorando diferenças e focando só em
semelhanças, alguns argumentam que Gênesis "plagiou" diretamente
esses elementos, o que é incorreto e envolve projetar uma noção de plágio sem
sentido nesse contexto. Ninguém diz que uma obra de literatura é um plágio
porque se inspirou em textos literários clássicos ou porque apresenta
narrativas semelhantes a outras literaturas. Além do mais, nenhuma cultura é
dona de um mito e é impossível rastrear a primeira construção de um mito. Não
faz sentido pensar, por exemplo, que mitos babilônicos sejam mais originais que
mitos bíblicos pois todo mito tem inspiração em mitos mais antigos.
Outro
caso ocorre quando se compara o relato bíblico do dilúvio com o Épico de Atrahasis
ou Epopeia de Gilgamesh, que também descrevem uma inundação causada
pelos deuses e a construção de uma arca. Conclui-se daí, erroneamente, que
Gênesis é apenas uma falsificação ou cópia desses relatos, ignorando diferenças
teológicas significativas entre as narrativas. Mais um exemplo é o caso do
relato da Torre de Babel que muitas dizem ser uma cópia de histórias
mesopotâmicas de zigurates, como o Etemenanki na Babilônia, construído
para alcançar os céus. As semelhanças entre essas narrativas apenas refletem
uma tradição compartilhada do Oriente Próximo, não é possível produzir um texto
sem compartilhar das influências de seu contexto de produção.
É
importante considerar que não é tão simples dizer que as narrativas bíblicas de
Gênesis são inspiradas principalmente nesses relatos mesopotâmicos. Isso ocorre
porque as semelhanças não são tão gritantes para serem conclusivas. Além disso,
pode ser que tenha havido múltiplas influências, diversas narrativas diferentes
podem ter influenciado o relato bíblico e as que sobraram ou temos acesso são
apenas uma parte delas. Muitas pessoas exageram em como os mitos mesopotâmicos
inspiraram os relatos bíblicos.
Há
também quem fale que o relato do nascimento de Moisés foi copiado do mito de
Sargão da Acádia, onde o herói é colocado em um cesto no rio e encontrado por
uma pessoa de classe alta. Outra vez, ignora-se que, apesar da semelhança
estrutural, o contexto é distinto. Também é comum comparar as leis mosaicas ao
Código de Hamurabi, dizendo que as leis bíblicas são plágio, pois ambos contêm
normas sobre homicídio, roubo e propriedade. A verdade é que é razoável esperar
que códigos de lei antigos sejam semelhantes porque compartilhamos intuições
morais razoavelmente comuns e sociedades tem regras muito parecidas em certos
temas como homicídio ou roubo. No entanto, é evidente que o código de Hamurabi
teve influência no código mosaico, mas influência não é plágio.
Quanto
ao Novo Testamento, há aqueles que alegam que os relatos do nascimento de Jesus
são cópias de narrativas sobre nascimentos de figuras míticas como Hórus ou
Mitra, porque incluem elementos como uma estrela, visitantes e a divindade da
criança. Ha ainda quem fale que a ressurreição de Jesus é uma cópia de mitos
como o de Osíris, que ressuscita no submundo, ou de Tamuz, associado à
renovação cíclica. Muitas vezes essas semelhanças são completamente inventadas.
Não há nada que realmente indique que Jesus seja uma cópia de mitos pagãos.
A
falácia do plágio mítico é muito comum entre neoateus. No Brasil, essa falácia
é repetidamente cometida, por exemplo, pelo neoateísta Antônio Miranda. Vale
lembrar que qualquer estudo sobre a Bíblia que fale de coisas como “plágio”,
“farsa” ou “cópia” mostra-se sob suspeita de princípio. Nenhum desses termos ou
conceitos fazem parte da pesquisa bíblica séria.
(2) Falácia da acumulação de versículos:
Essa
falácia consiste em acumular um grande número de versículos bíblicos fora de
contexto para "provar" uma tese, assumindo que a quantidade de
citações automaticamente valida o argumento, mesmo que os textos citados não
sejam relevantes ou diretamente relacionados ou não signifiquem o que parecem
dizer quando lidos no seu contexto. Por exemplo, muitos aniquilacionistas usam
versículos como Salmo 37:20 ("os ímpios perecerão"), Malaquias 4:1
("os arrogantes serão como palha"), entre outros, para sustentar que
o destino final dos ímpios é o aniquilamento, mesmo que no contexto esses
textos falem da morte terrena ou de imagens de destruição sem se referir à
aniquilação final no julgamento escatológico.
Um
grande exemplo disso é o texto de Lucas Banzoli em que ele lista “125
versículos bíblicos de aniquilacionismo dos ímpios”, mas lidos no contexto
esses versículos não falam de aniquilação final da existência, mas de
destruição terrena dos ímpios. Em outro texto, Lucas Banzoli também faz uma
lista de “300 vezes que a alma morre nos originais da Bíblia”, ignorando que
nem sempre “alma” é a melhor tradução para as palavras nephesh e psyché
e que esse termo é polissêmico. Que textos que usem essas palavras falem de
algo que é mortal, não significa necessariamente que a Bíblia não apoie em
nenhum lugar a ideia de imortalidade da alma.
Alguns
calvinistas também tentam defender seus pontos citando uma lista de textos que
falem sobre predestinação ou Deus determinando algo, como Romanos 9:16-18,
Efésios 1:4-5 e Provérbios 16:4, mas muitas vezes lidos em seu contexto esses
textos não necessariamente apoiam a ideia de predestinação calvinista. Muitas
pessoas também defendem o sabatismo, tentando mostrar a quantidade de passagens
bíblicas que falam de guardar o sábado. Por exemplo, o site Remanescente do
Sétimo Dia, fez uma lista de “116 Versículos Sobre o Sábado a Partir de 19
Livros da Bíblia”. A verdade é que a questão se a ordenança do sábado é exigida
biblicamente para os cristãos não pode ser baseada na quantidade de textos
bíblicos que falem da guarda do sábado, a discussão maior é se o Novo
Testamento continua assumindo que após a ressurreição de Cristo o sétimo dia
continuou a ser tratado pelos cristãos como o dia de guarda, não havendo uma
mudança para o domingo já nesse momento inicial do Cristianismo.
(3)
Falácia da Harmonização Forçada:
A
falácia da harmonização forçada ocorre quando alguém tenta unificar narrativas,
textos ou ideias bíblicas que, por contexto, autoria ou propósito, não foram
originalmente concebidos para serem coerentes entre si. A abordagem
histórico-crítica reconhece as divergências, as perspectivas distintas dos
autores e a evolução das ideias bíblicas.
Um
exemplo clássico consiste nas tentativas de combinar as narrativas natalinas de
Mateus e Lucas como se fossem uma só. Mateus relata que José e Maria sempre
moraram em Belém, que Jesus nasceu na casa de sua família em Belém, que o bebê
Jesus foi visitado por magos, que a família de Jesus teve que fugir de casa
rumo ao Egito por causa de uma perseguição de Herodes e que depois que Herodes
morreu, a família de Jesus se mudou para Nazaré. Lucas, por outro lado, narra
que a família de Jesus morava em Nazaré, que tiveram de ir a Belém por causa de
um censo, que Jesus nasceu em uma manjedoura em Belém, foi visitado por
pastores e depois a família de Jesus voltou para Nazaré. As duas narrativas
simplesmente são diferentes e não podem ser harmonizadas sem gerar ou
contradições ou leituras truncadas.
Outro
exemplo consiste em tentar unificar as duas narrativas de criação em Gênesis
como se fossem uma só sequência cronológica. A narrativa eloísta da criação de
Gênesis 1 diz que Deus criou o mundo em uma semana, colocando ordem no caos
primordial, criando primeiro a luz, depois o domo celeste, depois os corpos
celestes (sol, lua e estrelas), depois as plantas, os animais e, por fim, no
mesmo dia, o homem e a mulher. Já a narrativa javista da criação em Gênesis 2,
diz que no começo havia um deserto, que depois Javé criou o homem do pó da
terra e o colocou no jardim para cultivar a terra, mas vendo que o homem estava
solitário, Javé, em seguida, criou os animais do pó da terra e, só por fim, a
mulher da costela do homem. De novo, a duas narrativas têm estruturas, estilos
e propósitos diferentes. A própria ordem em que as coisas são criadas é
distinta e uma narrativa não é continuação da outra.
Mais
um caso de tentativa de harmonização forçada é tentar conciliar as genealogias
de Jesus em Mateus e Lucas. É impossível reconciliar as genealogias de Mateus
1:1-17 e Lucas 3:23-38 como se fossem a mesma linhagem. Mateus traça a linhagem
de Abraão a Jesus e menciona 42 gerações. Lucas traça de Adão a Jesus com cerca
de 77 gerações e ambas as narrativas se propõem a apresentar os ancestrais de
Jesus a partir de seu pai, José. As genealogias têm nomes, sequências e
propósitos diferentes e refletem interesses teológicos distintos, e não uma
tentativa de precisão histórica.
Há
também tentativas de harmonizar os relatos de Mateus 27:5 (Judas se enforca) e
Atos 1:18 (Judas "caiu de cabeça e suas entranhas se derramaram").
Ambos os textos têm versões contraditórias sobre como Judas morreu. A tentativa
de criar uma narrativa onde Judas se enforca e, depois, seu corpo cai e explode
é completamente forçada. Há, também,
toda uma tentativa de harmonizar contradições entre os relatos dos Evangelhos.
Mateus diz, por exemplo, que Jesus curou dois cegos saindo de Jerico, Marcos
diz que foi um cego chamado Bartimeu e Lucas diz que Jesus curou o cego quando
estava a caminho de Jericó, não saindo da cidade. Há também a divergência nos
evangelhos de quando Jesus foi crucificado, Marcos diz que Jesus foi
crucificado na manhã da Páscoa judaica enquanto João diz que Jesus crucificado
à tarde, quando os cordeiros pascais eram sacrificados.
Os
relatos de ressurreição nos Evangelhos também apresentam bastante
discrepâncias. Mateus menciona duas mulheres (Maria Madalena e "a outra
Maria") indo ao túmulo, Marcos cita três mulheres (Maria Madalena, Maria
mãe de Tiago e Salomé), já Lucas menciona um grupo maior de mulheres sem nomes
exatos, enquanto João descreve apenas Maria Madalena. Há também diferenças em
relação ao momento da visita: Mateus afirma que foi ao amanhecer, Marcos fala
do nascer do sol, Lucas descreve como de manhã cedo e João diz que ainda estava
escuro. As descrições sobre quem estava no túmulo também divergem: Mateus
relata um anjo sentado sobre a pedra, Marcos menciona um jovem vestido de
branco dentro do túmulo, Lucas fala de dois homens com vestes resplandecentes e
João descreve dois anjos sentados onde o corpo de Jesus havia estado. Além disso, Mateus diz que a pedra foi
removida na presença das mulheres por um anjo, enquanto nos outros Evangelhos
ela já estava removida quando as mulheres chegaram.
A
leitura histórica da Bíblia não busca harmonizar textos, apenas reconhece o que
cada autor diz a partir dele mesmo. O método de harmonização de textos não faz
parte da leitura secular da Bíblia, antes cada texto deve ser interpretado por
si mesmo e somente se deve buscar harmonizar as ideias de um autor com ele
mesmo, a menos que haja evidências de que o autor mudou de opinião de um texto
para outro.
(4)
Falácia da Pressuposição dos Intérpretes Corretos
Essa
falácia ocorre quando se assume que, sempre que um autor bíblico cita ou faz
alusão a outro texto, ele o interpreta corretamente ou compreende seu
significado original. No entanto, a abordagem histórico-crítica reconhece que
os autores bíblicos, como qualquer outro intérprete, reinterpretam, modificam
ou até mesmo descontextualizam os textos citados para servir aos seus próprios
propósitos teológicos ou narrativos.
Por
exemplo, Mateus 2:15 cita Oséias 11:1 ("Do Egito chamei o meu filho")
como uma profecia cumprida na fuga de Jesus para o Egito, mas o texto de Oséias
não é uma profecia messiânica; refere-se ao êxodo de Israel do Egito. Mateus 1:23 interpreta Isaías 7:14 ("a
virgem conceberá e dará à luz um filho") como uma profecia sobre o
nascimento virginal de Jesus, mas no contexto de Isaías, a palavra hebraica
"almah" significa "jovem" e não "virgem" e
a passagem refere-se a um bebê que nasceria de modo contemporâneo a Isaías, não
a Jesus.
Em
Romanos 10:6-8, Paulo cita Deuteronômio 30:12-14 como uma evidência de que a
justificação pela fé estava disponível desde os tempos de Moisés, mas não em
seu contexto original, a passagem de Deuteronômio refere-se à obediência à lei
de Deus como algo acessível, não à justificação pela fé. Paulo também cita a
expressão “o justo viverá pela fé” de Habacuque 2:4 para sustentar sua doutrina
da justificação pela fé, quando em Habacuque a expressão se refere apenas que
os justos iriam sobreviver à invasão babilônica graças à sua fidelidade. Pedro,
por sua vez, interpreta o Salmo 16:10 ("não permitirás que o teu Santo
veja a corrupção") como uma profecia da ressurreição de Jesus, mas no
contexto original, o Salmo 16 expressa a confiança de Davi em sua própria
proteção divina,
Em
geral, os autores do Novo Testamento adotam uma leitura alegórica dos textos do
Antigo Testamento. Essa leitura, embora válida, não é a leitura histórica, a
não ser quando sabemos que um autor quis escrever certo texto para que ele
fosse lido alegoricamente. Portanto, assumir que um autor do Novo Testamento
entende os textos que ele cita ou faz alusão exatamente como seus autores
originais os concebiam ou de acordo com o significado que esse texto tem no
original é um erro. Os autores bíblicos frequentemente reinterpretavam textos
antigos de forma criativa para atender aos seus objetivos teológicos.
(5)
Falácia da Bíblia Autointerpretativa
É
comum em contextos teológicos evangélicos ouvir-se a expressão “A Bíblia
interpreta a si mesma” ou “A Escritura interpreta a Escritura”. Mas isso, para
a leitura histórica, não é um princípio hermenêutico, ao contrário, isso é um
erro hermenêutico grave. A falácia da Bíblia autointerpretativa ocorre quando
se assume que o significado de uma palavra, expressão ou conceito em um texto
bíblico deve ser esclarecido por outros textos da Bíblia que utilizam os mesmos
termos ou tratam de temas semelhantes, sem levar em conta contextos históricos,
culturais e autorais distintos.
Por
exemplo, muitos interpretam as palavras de Jesus em João 8:58 ("Antes que
Abraão existisse, eu sou") como uma afirmação direta de divindade,
conectando-a com Êxodo 3:14 ("Eu sou o que sou"). Mas não há qualquer
conexão entre o termo “Eu Sou” no Evangelho de João e o termo “Eu Sou” em Êxodo
3:14. Na verdade, no grego a distância é ainda maior porque na LXX a expressão
em Êxodo 3:14 é “Aquele que é” (grego: ho on) enquanto em João 8:58 é
“Eu sou” (grego: ego eimi), ou seja, no grego a expressão nem é a mesma
no original.
Alguns
interpretam a serpente no Jardim do Éden como Satanás, com base em Apocalipse
12:9, onde Satanás é chamado de "a antiga serpente". Mas no contexto
de Gênesis, a serpente é apenas uma criatura astuta e não é identificada com
Satanás, figura que nem existia quando o texto foi escrito.
Alguns
também interpretam a expressão “Filho do Homem” nos evangelhos como tendo o
mesmo sentido que a expressão “Filho do Homem" em Daniel 7:13, assumindo
que toda menção a "Filho do Homem" nos Evangelhos reflete diretamente
a visão apocalíptica de Daniel 7:13. Além disso, um exemplo curioso ocorre
quando se interpreta que o “cavalo branco” de Apocalipse 6:2 é o mesmo “cavalo
branco” de Apocalipse 19:11, quando no primeiro caso o cavalo branco representa
as conquistas do império romano, enquanto no segundo caso representa Jesus.
Há
ainda quem confunda os diferentes significados da expressão “Dia do Senhor”.
Por exemplo, o "Dia do Senhor" em Joel 2:31 descreve um evento
histórico iminente relacionado a um juízo sobre os habitantes de Judá, já 1
Tessalonicenses 5:2 usa o termo "Dia do Senhor" para se referir à
volta de Cristo enquanto em Apocalipse 1:10, a expressão “Dia do Senhor” refere-se
provavelmente ao Domingo, o dia em que Cristo ressuscitou.
Um último exemplo diz respeito à expressão “línguas estranhas”. Em Atos 2 as línguas estranhas se referem a idiomas estrangeiros, enquanto em 1 Coríntios 14 o termo se refere a expressões extáticas. Assim, um texto não pode ser interpretado à luz do outro por usar a mesma expressão. Na leitura histórica da Bíblia, ao invés de “A Bíblia interpreta a si mesma” dizemos que “um autor bíblico só deve ser interpretado à luz de seus próprios textos ou dos textos aos quais seu texto alude ou se refere”. Isso não significa que nunca se possa usar outros textos para ajudar a entender um texto de outro autor, mas isso deve ser feito com muito cautela e quando há justificativa suficiente para tal e, nesses casos, a evidência externa deve ter um papel auxiliar.
(6)
Falácia da unidade da Bíblia
A
falácia da unidade da Bíblia ocorre ao assumir que as Escrituras apresentam uma
visão completamente coesa e única sobre temas teológicos, éticos ou históricos,
desconsiderando a diversidade de contextos e propósitos de seus autores. Os
autores bíblicos apresentam opiniões divergentes sobre um mesmo tema. Por
exemplo, o autor de Eclesiastes 5:9-10 diz que os mortos estão inconscientes, o
autor de 1 Samuel 28:15 diz que o espírito do morto Samuel apareceu para se
comunicar, já Paulo em Filipenses 1:23 diz que na morte a pessoa parte para
estar com Cristo. Ou seja, a Bíblia não tem uma única doutrina sobre o
pós-morte.
Não
existe nenhuma resposta que possa ser dada a uma pergunta vaga e ampla do tipo
“O que a Bíblia diz sobre x?” Na verdade, se queremos ser rigorosos só se pode
perguntar “O que o autor bíblico y diz no livro z sobre x?” Até mesmo um mesmo
autor bíblico pode mudar de opinião ao longo dos seus textos. Por exemplo, em
seus textos mais precoces, Paulo parece acreditar que estaria vivo quando Jesus
voltasse enquanto em textos mais tardios ele parece já ter aceitado que sua
morte ocorreria antes disso. Portanto, não se deve assumir a ideia de que a
Bíblia é um livro com uma única visão sobre as coisas.
(7)
Falácia do idioma original:
A
falácia do idioma original ocorre quando se tenta justificar ou interpretar
passagens bíblicas exclusivamente com base no significado de termos nos idiomas
originais, como o hebraico, grego ou aramaico, desconsiderando o contexto
histórico, cultural, literário e teológico. A ideia de que o significado de uma
palavra resolve todas as questões interpretativas é simplista e pode levar a
equívocos. Além disso, se exagera o papel de um termo no original como se os
autores bíblicos estivessem extremamente preocupados com cada palavra que
usavam em um versículo, como se fossem autores extremamente técnicos.
Por
exemplo, a distinção entre "ágape" e "philia"
em grego, é frequentemente usada para contrastar tipos de amor superior e
inferior, mas no grego essas palavras são no geral usadas como sinônimos e a
ideia de que elas diferem fortemente de significado vem da teoria de C.S. Lewis
sobre os quatro amores, que não reflete um uso técnico dessas palavras no
grego.
Outro
exemplo é o termo "soteria", traduzido como
"salvação". Embora frequentemente associado à salvação espiritual, em
vários contextos, incluindo o Antigo Testamento, ele também abrange
significados sociais e políticos, como a libertação de opressões. Do mesmo
modo, muitas pessoas dizem que “dikaiosis” (justificação) significa
“declarar justo” e com isso tentam sustentar que em Paulo, a justificação é uma
mera “declaração divina” em sentido legal e jurídico, não uma transformação da
pessoa em alguém justo.
Além
disso, o termo “Ekklesia", frequentemente traduzido como
"igreja", é entendido de maneira equivocada como uma instituição
religiosa formal, quando, na época de Paulo, referia-se principalmente a
comunidades locais de crentes. Já "aphesis", traduzido como
"perdão", muitas vezes se refere não apenas ao perdão de pecados, mas
também à libertação de opressões sociais, conforme demonstrado na missão de
Jesus em Lucas 4:18.
Alguns também tentam negar a ideia de inferno na Bíblia porque o termo Geena se referia ao Vale de Hinon, quando o termo também era empregado para se referir a um compartimento de tormento no Seol (mundo dos mortos). Há também quem exagere a interpretação de que o termo “Kyriós” no Novo Testamento se referindo a Jesus tenha sempre o mesmo sentido que o nome “Javé” na Bíblia Hebraica. Muitas pessoas também tentam determinar o real significado de João 1:1 simplesmente com base na palavra “theós” aparecer com artigo na primeira menção e sem artigo na segunda. Alguns também acham que se pode dizer que Gênesis 1 ensina a criação a partir do nada simplesmente com base do emprego no hebraico do verbo “barah”.
Testemunhas de Jeová, por sua vez, tentam negar a ideia de volta visível de Jesus na Bíblia com base em a palavra paraousia querer dizer "presença". Elas também negam que Jesus morreu numa cruz argumentando que a palavra grega stauros significa apenas estaca, não cruz. Nenhum desses argumentos se sustenta.
Alguém
famoso no Brasil por cometer de modo repetido a falácia do idioma original é o
professor Fábio Sabino que constrói várias interpretações equivocadas de textos
bíblicos tentando justificar essas interpretações citando o hebraico ou grego
bíblicos. Nenhuma interpretação da Bíblia pode ser definida simplesmente com
base no tipo de termo ou construção usada no idioma original. Embora o termo no
original seja importante de ser analisado, é o contexto que principalmente
determina a correta interpretação de um texto bíblico.
(8)
Falácia da unidade cultural
A
falácia da unidade cultural ocorre ao presumir que todas as pessoas da época da
Bíblia compartilhavam as mesmas ideias, crenças e valores, levando à
interpretação equivocada de que textos bíblicos ou extrabíblicos contemporâneos
sempre refletem um pensamento uniforme. Essa abordagem ignora a diversidade
cultural, teológica e social existente na antiguidade, especialmente no
contexto do judaísmo bíblico.
Por
exemplo, muitos dizem que devemos abandonar a ideia de imortalidade da alma ou
consciência dos mortos, porque a “visão hebraica sobre a morte” é a de que os
mortos se encontravam inconscientes. Mas a ideia de que os hebreus tinham uma
visão homogênea sobre a vida após a morte é um erro comum. A época bíblica
abrigava diversas visões sobre a morte e o além, refletindo uma pluralidade de
crenças dentro do judaísmo.
Outro exemplo envolve as expectativas sobre o Messias na época de Jesus. Muitos dizem que Jesus não foi aceito como Messias porque os judeus esperavam um Messias vitorioso que acabaria com o domínio romano. Mas a suposição de que todos os judeus esperavam um Messias político e conquistador é simplista e ignora tradições alternativas presentes na literatura judaica. Havia leituras messiânica que falavam da figura do Messias Ben Yoseph (Filho de José), um Messias sofredor que enfrentaria sofrimento e morte antes da chegada do Messias Ben David (Filho de Davi), o rei vitorioso. Portanto, as expectativas messiânicas na época de Jesus não eram unívocas.
Esses
casos evidenciam como a falácia da unidade cultural distorce a interpretação
histórica e teológica dos textos antigos. Citar que certo texto extra-bíblico
da mesma época e região de um texto bíblico apresentava certa concepção não
garante que essa seja a mesma concepção refletida no texto bíblico em questão.
Reconhecer que os textos refletem perspectivas múltiplas, mesmo dentro de um
único período histórico, é essencial para um estudo histórico da Bíblia.
(9)
Falácia do Cristianismo retroativo
A
falácia do Cristianismo retroativo consiste em interpretar textos e eventos
bíblicos antigos à luz de conceitos e dogmas cristãos posteriores, como se os
autores ou personagens bíblicos tivessem plena consciência dessas ideias. Esse
erro ocorre quando se projeta a teologia cristã desenvolvida ao longo dos
séculos em textos que pertencem a um contexto histórico, cultural e teológico
anterior, distorcendo o significado original das passagens.
Um
exemplo claro dessa falácia é a interpretação de passagens messiânicas do
Antigo Testamento, como Isaías 53. Muitos cristãos entendem esse texto como uma
referência direta a Jesus Cristo, o "servo sofredor". No entanto, no
contexto judaico original, Isaías 53 era frequentemente associado ao povo de
Israel ou a uma comunidade remanescente de fiéis no pós-exílio. Outro caso
consiste em interpretar Isaías 9:6 como um texto sobre Jesus, quando o texto na
verdade falava do rei Ezequias.
Mais
um exemplo é a interpretação dos "irmãos de Jesus" mencionados nos
Evangelhos (como em Marcos 6:3). No texto original, a palavra grega usada para
"irmãos" (adelphoi) é amplamente entendida como referindo-se a
irmãos de sangue. No entanto, devido ao dogma da perpétua virgindade de Maria,
desenvolvido séculos depois, muitos cristãos interpretam esses
"irmãos" como primos ou parentes distantes, mesmo que o texto não
forneça evidências para essa leitura que só surgiu com São Jerônimo no período
pós-niceno.
Mais
um caso é a interpretação de Gênesis 1:26 ("Façamos o homem à nossa
imagem") como uma referência à Trindade. O uso do plural
"façamos" muitas vezes é lido como evidência de uma compreensão
trinitária de Deus, mas, no contexto do Antigo Oriente Próximo, é mais provável
que o plural reflita um diálogo com o conselho divino. Supor que os autores de
Gênesis estavam articulando uma visão trinitária é profundamente anacrônico.
Outros
casos podem envolver achar que Mateus 28:19 é uma “fórmula batismal trinitária”;
que João 1 quando fala da encarnação do Verbo está ensinando a doutrina da
dupla natureza (humana-divina) de Cristo; achar que a Bíblia ensina a doutrina
do purgatório, que quando Jesus chamou Pedro de “pedra” sobre a qual edificaria
a igreja, que Pedro estava sendo instituído como papa; ver na expressão de que
Maria era “cheia de graça” uma referência ao dogma da imaculada Conceição de
Maria; interpretar a mulher de Apocalipse 12 como a Maria; ler Gênesis 1 como se
fosse criação ex nihilo; interpretar serafins e querubins como sendo
anjos; ver na Bíblia qualquer referência a uma suposta “queda de Lúcifer”; ler
Paulo com as lentes do agostianismo; entre outros.
(10)
Falácia da interpretação possível:
A
falácia da interpretação possível ocorre quando se rejeita a interpretação mais
provável de um texto bíblico, baseada no contexto e na plausibilidade
histórica, em favor de uma interpretação menos provável, mas teoricamente
possível. Esse erro é comum quando se prioriza possibilidades remotas, muitas
vezes influenciadas por interesses teológicos, sobre a leitura mais consistente
com o texto e o ambiente cultural em que foi escrito.
Um
exemplo clássico dessa falácia está na interpretação de Gênesis 6:2, que
menciona os "filhos de Deus" tomando as "filhas dos homens"
como esposas. Alguns defendem que "filhos de Deus" refere-se a seres
humanos piedosos, descendentes de Sete, ao invés de anjos caídos. Embora seja
teoricamente possível que o texto esteja se referindo aos descendentes de Sete,
a leitura mais provável, com base no uso do termo "filhos de Deus" em
outros contextos bíblicos e no livro de Enoque que traz a mesma história, é que
o texto alude a anjos tomando esposas humanas.
Outro
exemplo significativo, já considerado, está na tentativa de reinterpretar os
"irmãos" de Jesus mencionados nos evangelhos como "primos",
em defesa do dogma da virgindade perpétua de Maria. Embora seja possível que o
termo adelphos possa ser usado de forma mais ampla para se referir a
parentes próximos, o uso predominante da palavra no Novo Testamento e o modo
como ela é usado para se referir aos irmãos de Jesus sugere trata-se de irmãos
biológicos.
Outro
exemplo ocorre quando se interpreta que Jesus ao dizer para o jovem rico “Por
que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser Deus” (Marcos 10:18), não estava
negando ser Deus, mas fazendo uma pergunta socrática ou retórica reflexiva. Mas
embora essa leitura seja possível, ela é improvável. Muito mais plausível é ler
que Jesus repreende o jovem rico por tratá-lo como Deus.
Também
são leituras possíveis, mas implausíveis, ler Apocalipse 1:10 como referência
ao sábado, ao invés do Domingo; ler o mandamento divino sobre não adorar outros
deuses como um texto sobre monoteísmo ao invés de monolatria; ler a referência
aos espíritos em prisão em 1 Pedro 3:19 como falando de pessoas espiritualmente
presas ao invés de espíritos de mortos; ler a “pedra” em Mateus 16:18 como
referência a Jesus ao invés de Pedro; ler as línguas estranhas de 1 Coríntios
14 como idiomas estrangeiros ao invés de expressões extáticas, entre outros. O
fato de uma interpretação ser teoricamente possível não significa que ela seja
uma boa interpretação.
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