A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO DE CHANTEPIE DE LA SAUSSAYE (RESUMO)

        O texto a seguir é um resumo da parte I do livro Interpreting religion : The phenomenological approaches of Pierre Daniel Chantepie, W. Brede Kristensen, and Gerardus van der Leeuw intitulada The Phenomenology of Religion of Pierre Daniel Chantepie de la Saussaye escrito por George Alfred James. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. Este resumo tem três seções principais: (i) A abordagem a-histórica da religião de Chantepie; (ii) A abordagem a-teológica da religião em Chantepie; (iii) A abordagem antirreducionista da fenomenologia da religião de Chantepie.

 

I. A ABORDAGEM A-HISTÓRICA DA RELIGIÃO EM CHANTEPIE

 

I.I A FENOMENOLOGIA DE CHANTEPIE COMO UM ESTUDO SISTEMÁTICO DA RELIGIÃO

 

       A fenomenologia de Chantepie é um estudo sistemático do fenômeno religioso, adotando uma abordagem não-evolutiva e uma visão anti-historicista de seu objeto de estudo. Para Chantepie, no estudo das religiões, não é suficiente comparar as formas de religiosidades próximas no tempo e no espaço, pois há fortes analogias entre mitos, símbolos e rituais de diferentes nações em todos os estágios de civilização. Portanto, ao comparar religiões não é preciso limitar-se a cultura próximas que tiveram relações entre si. Enquanto alguns estudiosos consideram as semelhanças entre religiões que não tiveram contato como uma coincidência. Chantepie entende que nessas analogias se encontram a natureza e o sentido do fenômeno religioso.

       Nos seus estudos da religião, Chantepie começa investigando os vários objetos de crença e culto das religiões. A partir disso, ele classifica alguns tipos de fenômenos religiosos: (i) idolatria: trata-se da adoração de um ídolo, não no sentido pejorativo, mas no sentido da representação de um ser ou poder divino; (ii) fetichismo: trata-se do culto dirigido a pedras, representações de humanos, animais, árvores, partes do corpo e imagens que combinam diferentes figuras; (iii) adoração da natureza: envolve o culto da terra, água, ar e fogo; (iv) adoração do homem: envolve o culto de figuras ancestrais, heróis e santos; (v) adoração a deuses: trata-se do culto a Deus ou deuses.

 

I.II. A FENOMENOLOGIA DE CHANTEPIE COMO UM ESTUDO NÃO-EVOLUTIVO DA RELIGIÃO

 

        Chantepie procura distanciar sua abordagem de concepções que buscam traçar uma história do fenômeno religioso. Por exemplo, se pegarmos os diferentes tipos de expressão religiosa: idolatria, fetichismo, adoração à natureza, homens e deuses, é importante ter em mente que do ponto de vista histórica nenhuma dessas formas supera a outra. De acordo com Chantepie, um nome importante para o início dos estudos das religiões foi Georg Hegel, o que teria feito com que esses estudos ganhassem uma orientação baseada na ideia de evolução ou desenvolvimento. No entanto, a ideia de que as religiões se formam a partir de um processo único que se dá pela evolução de uma forma primitiva de religiosidade em direção a uma forma superior de religião, não pode ser levada a sério de acordo com Chantepie.

       Chantepie também rejeita a noção de uma história natural das religiões. Nesse ponto, ele faz uma crítica a David Hume, que fez um esforço de estudar as religiões do ponto de vista das ciências naturais. O problema dessa abordagem é que ela pensa as religiões a partir de uma teoria mecanicista sobre a natureza do universo, tendo o problema de fazer uma transposição da teoria da Evolução da biologia para o campo de estudo das religiões. Para a perspectiva da história natural, o princípio de que o complexo evolui do mais simples, se aplicaria ao desenvolvimento das religiões tanto quanto se aplica à origem das espécies. Quando a religião é considerada dessa forma o desenvolvimento geral das religiões é atribuído a fatores externos, como clima, e a fatores internos, como raça. Chantepie critica essa abordagem porque ela pensa a religião como se desenvolvendo naturalmente, ignorando a liberdade humana.

        A tipologia das religiões de Chantepie não pretende dizer qual forma de religião surgiu primeiro, para ele, as origens das religiões são um mistério para nós. Embora a obra de Chantepie anteceda a de Edmund Husserl em algumas décadas, pode-se dizer que ele retrocede sua visão do dado do noema em direção a noesis do fenômeno religioso. Ao invés de focar no conteúdo do objeto adorado, ele foca nos atos de adoração. Por exemplo, dos deuses ele se volta para a magia e adivinhação, sacrifício e oração, tempos e lugares sagrados, pessoas e comunidades sagradas e ao fluxo da vida religiosa. Isso significa que ele vai do elemento objetivo em direção ao elemento subjetivo.

          Ao considerar o aspecto subjetivo do fenômeno religioso, Chantepie analisa como os sacrifícios e as orações, os dois elementos principais do culto, têm a função de manter a relação entre Deus e os homens e de reestabelecer essa relação quando ela é prejudicada. Ele considera que num estágio primitivo, o culto tem a função de obter o favor dos deuses e num estágio mais avançado, o culto tem mais um papel de comunhão com o divino. Em relação às cerimônias, Chantepie menciona três ritos que, para ele, são de significado quase universal: (i) jejum: que tem como objetivo amortecer a sensualidade; (ii) purificação: que pressupõe que certas pessoas e objetos, sobre certas condições, se encontram impuros para o serviço sagrado; (iii) consagração: é o ato pelo qual pessoas ou objetos são separados do contexto comum a fim de serem dedicados aos deuses.

          Em relação aos espaços e tempos sagrados, Chantepie observa que a maneira como os templos são construídos, ornamentados e orientados possui um significado simbólico. Os templos são lugares em que certas cerimônias têm seu lugar em tempos específicos, como é o caso dos festivais em determinadas estações e dias especiais dedicados aos deuses. Pode-se incluir em relação a esses tempos sagrados específicos até mesmo os jogos atléticos. Já no que diz respeito a pessoas sagradas, Chantepie observa que, entre povos primitivos, certas pessoas designadas são consideradas divinas ou receptáculos do divino. Já em sociedades mais civilizadas, há o estabelecimento de uma classe sacerdotal com certos privilégios e deveres.

          É importante dizer que quando Chantepie fala de estágios primitivos e estágios avançados, é preciso ter em mente a distinção entre sua visão e uma visão evolutiva. Para Chantepie, é possível distinguir certos estágios de civilização, observando a distribuição de um fenômeno entre esses estágios. Diferente disso, a visão evolutiva afirma que certos fenômenos estão necessariamente associados a certos estágios de tal forma que um tipo de religiosidade sucede a outro de maneira necessária em uma dada ordem no tempo. Ao falar de sociedades primitivas e civilizadas, Chantepie pretende apenas distinguir certos tipos de civilização nos quais os fenômenos religiosos se manifestam de diferentes maneiras.

 

I.III. A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO DE CHANTEPIE COMO UM ESTUDO ANTI-HISTORICISTA DA RELIGIÃO

 

          A abordagem fenomenológica da experiência religiosa é uma abordagem anti-historicista, trata-se de um tratamento sistemático dos dados e não de um estudo em termos de desenvolvimento das religiões. É importante frisar, no entanto, que a abordagem fenomenológica não significa negar que o fenômeno religioso se dá em determinado tempo histórico, antes ela enfatiza a importância de não reduzir o fenômeno religioso a um simples efeito de condições históricas. Podemos definir como historicismo, a compreensão de que o fenômeno religioso tem suas causas eficientes em fatores históricos, podendo ser explicados apenas por eles.

          Para Chantepie, as bases da vida religiosa estão em certos estados e sentimentos religiosos. Esses sentimentos, embora não possam ser abstraídos completamente de fatores históricos, estão para além dos limites daquilo que a ciência histórica pode apreender. Portanto, uma ciência que se preocupe apenas com condições históricas e materiais externas não é capaz de dar conta de forma adequada das bases do fenômeno religioso. Isso também significa que os fenômenos religiosos não podem ser compreendidos como surgindo de um processo de desenvolvimento histórico. Chantepie critica o historicismo evolucionista por não admitir no fenômeno religioso qualquer substância real, razão ontológica ou destinação teleológica. Ele também nega uma visão ideológica de que a religião seria uma invenção de uma elite política para garantir a organização social.

 

II. A ABORDAGEM A-TEOLÓGICA DA RELIGIÃO EM CHANTEPIE

 

II.I TEOLOGIA NA HOLANDA POR OCASIÃO DO ADVENTO DA FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

 

           Para entender a abordagem a-teológica da religião em Chantepie, é necessário considerar algumas das correntes contemporâneas de teologia na Holanda por ocasião do advento da fenomenologia da religião. Em meados do século XIX, a teologia protestante na Holanda foi brevemente dominada pelo que ficou conhecido como Modernismo, ou "Velho Modernismo", partindo da crença de que era possível conciliar o Cristianismo com a visão moderna de mundo.  A visão moderna de mundo era dominada pela ciência natural. Dentro dessa perspectiva, as coisas foram concebidas dentro de um sistema de causas e efeitos. Para uma teologia influenciada por essa visão, Deus não poderia agir a não ser em conformidade com esse sistema de causalidade. Se tudo seguia as causas naturais, então era preciso admitir um teísmo não-sobrenaturalista e a cristologia passou a focar na figura de Jesus como um mestre humano.

          O calvinismo holandês, no entanto, se opôs fortemente ao Cristianismo modernista. A principal crítica ao Cristianismo modernista é que ele inviabilizava a prática ética religiosa, já que sem uma visão sobrenatural ou de uma vida para além desta, a luta contra o pecado, a vida de oração e as ações de fé e esperança não faziam mais sentido. Como uma resposta a essa crítica, surgiu o que foi chamado de Modernismo Ético, que fazia uma separação entre duas realidades: o sistema da natureza e a realidade divina. Para essa nova perspectiva, o imperativo moral se encontrava no coração do homem e não na regularidade das leis causais da natureza.

          No entanto, uma outra abordagem também tentou fornecer uma resposta aos problemas do modernismo. Essa outra abordagem é chamada de Ortodoxia Ética, que tinha como foco a revelação de Deus na História especialmente na pessoa de Jesus Cristo. Foi a esse movimento que Chantepie esteve associado em sua carreira enquanto teólogo. O movimento da Ortodoxia Ética pode ser rastreado até Daniel Chantepie de la Saussaye, o pai e Pierre Daniel Chantepie de La Saussaye, conhecido na literatura simplesmente como La Saussaye para diferenciá-lo de Chantepie, seu filho. As principais visões de La Saussaye eram de que: (i) a Igreja é um corpo vivo, e que a teologia da Igreja deve, portanto, ser uma ciência progressiva, (ii) a Igreja está ligada à revelação de Deus em certos fatos da história na pessoa de Jesus de Nazaré, e na história do povo de Israel, não apenas do ponto de vista do desenvolvimento histórico, mas à luz do princípio da vida cristã, e (iii) que o princípio ético é o princípio fundamental da vida do Igreja.

          É importante pontuar que a Ortodoxia Ética foi importante para uma revitalização do Calvinismo Holandês, especialmente através da figura de Abraham Kuyper. Por causa da maneira como ele incorpora as características mais influentes do pensamento de La Saussaye, e por causa do impacto de seu pensamento na vida da Igreja, a teologia de Kuyper representa, talvez mais do que qualquer outro teólogo da época , o clima teológico que forma o pano de fundo do primeiro esforço em direção a uma abordagem fenomenológica da religião.

          Entendendo esse contexto de crítica à teologia do Cristianismo modernista, é possível compreender melhor em que sentido a fenomenologia da religião de Chantepie é não-teológica. A razão é que ele nega qualquer alegação de que seu empreendimento é um esforço para reconciliar a fé cristã com a visão de mundo moderno. Sua fenomenologia da religião não é uma teologia modernista. No entanto, sua fenomenologia também não se trata de uma de uma teológica ética tentando responder ao modernismo, nem é um tipo de calvinismo revitalizado (neocalvinismo). Quando Chantepie declara que seu esforço não é teologia, ele afirma que não é um empreendimento teológico de qualquer tipo predominante. Ela difere da teologia no objeto que estuda, em sua atitude em relação a esse objeto e em sua perspectiva sobre esse objeto.

 

II.II A DIFERENÇA ENTRE OS OBJETOS DE ESTUDO DA TEOLOGIA E DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

 

          A fim de distinguir o objeto de estudo da teologia e o objeto de estudo da fenomenologia da religião de Chantepie, podemos diferenciar sua abordagem da teologia da Abraham Kuyper. Kuyper acreditava que a revelação de Deus nas Escrituras tal qual sistematizada pelo Calvinismo fornecia as bases não apenas da vida religiosa, mas também para todas as esferas da vida humana, incluindo a sociedade e o Estado. Para Kuyper, a teologia era uma abordagem científica que tinha como objetivo o conhecimento de Deus. Kuyper chama de ciência, o impulso em direção ao conhecimento, tendo como objeto a totalidade cósmica da realidade.  A ciência, para ele, se estrutura como uma cosmovisão orgânica. Para ele, havia cinco esferas da existência que a ciência precisaria articular organicamente. São elas Deus, a física, a existência corporal, a existência social humana e a natureza.

          Essa visão orgânica do significado de ciência foi importante para o advento da ciência da religião. No entanto, enquanto a teologia de Kuyper se fundamenta na revelação e no conhecimento de Deus, a ciência da religião aborda a experiência religiosa sem levar revelação em conta. Isso não significa que a teologia e a ciência da religião sejam incompatíveis. A fenomenologia da religião, assim, não toma como pressuposto uma revelação de Deus, todavia, a teologia pode se beneficiar dos resultados produzidos por uma ciência da religião.

 

II.III. A DIFERENÇA ENTRE A ATITUDE TEOLÓGICA E A ATITUDE DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

 

         A fenomenologia da religião de Chantepie e a teologia não se diferenciam apenas em relação aos seus objetos, mas também no que diz respeito de suas atitudes em relação a eles. Mais recentemente, o teólogo Paul Tillich pontuou que a atitude do teólogo é de uma “preocupação última”. Para Abraham Kuyper, devido à natureza sagrada do objeto de estudo da teologia, requer-se do investigador uma atitude de fé e obediência. A fenomenologia da religião, por sua vez, restringe seu campo de investigação a uma observação daquilo que se mostra tomados como dados da consciência humana.

        Ao restringir sua investigação a fenômenos observados no âmbito dos dados históricos e etnográficos e em termos de sua posição como fatos da consciência humana, Chantepie limita seu estudo a este amplo campo. A fenomenologia da religião de Chantepie se distingue da teologia não apenas pelo fato de que seus objetos (atos religiosos, cultos, costumes e assim por diante) não podem ocupar o lugar que na teologia é ocupado pelo conhecimento de Deus, mas pelo fato de que os objetos de pesquisa etnográfica e histórica não são realidades para as quais o investigador se encontra em uma atitude de dependência.

 

II.IV. A PERSPECTIVA TEOLÓGICA E A PERSPECTIVA DA FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

 

        O fato de a fenomenologia da religião não ser uma teologia não é uma mera questão de palavras. A abordagem fenomenológica da religião, por suas qualidades, não é uma inquirição teológica. Essa diferença vai além de uma diferença de objetos e atitudes, ela também envolve uma diferença de perspectiva. Para Abraham Kuyper, a ciência teológica inclui uma investigação teológica da natureza e da história entendendo o homem como um ser criado à imagem de Deus. Para a perspectiva teológica de Kuyper é essencial compreender as manifestações religiosas entendendo que há na natureza humana uma “semente divina” e uma graça comum de Deus, o que são noções calvinistas.

         Enquanto a teologia kuyperiana compreender as tradições religiosas remetendo-as a uma semente divina natural e a uma graça comum, a fenomenologia da religião de Chantepie adota uma outra perspectiva. Chantepie, ao lidar com fenômenos religiosos, não está comprometido com a perspectiva calvinista de que a uma revelação comum de Deus na natureza humana e pela graça comum e que, devido à depravação humana, essa revelação teria sido distorcida dando origem as diferentes formas de religiosidade. Como a fenomenologia não leva em conta a ideia de revelação, há, pois, entre a teologia e a ciência da religião, uma diferença de perspectiva.

 

II.V. A PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA ATRAVÉS DA EVITAÇÃO DO TEOLÓGICO

 

        Chantepie considera que a perspectiva teológica é inapropriada para o trabalho em ciência e fenomenologia da religião, trata-se de uma perspectiva que, pelo propósito de sua investigação, ele deve evitar. Isso significa que um cientista da religião que é comprometido com a fé cristã deve tomar cuidado para manter uma perspectiva a-teológica. É preciso, pois, que o investigador evite a discussão de dados que dizem respeito a questões de significado teológico.

         O traço a-teológico na fenomenologia da religião de Chantepie se expressa no esforço de distinguir o objeto de sua investigação do objeto que é buscado em pesquisas teológicas como as de Kuyper. Também se expressa no esforço de distinguir o caminho pelo qual esse conhecimento é buscado do caminho da investigação teológica. O traço a-teológico é ainda expresso no esforço de Chantepie em distinguir a disposição teológica em relação ao objeto de sua investigação da atitude que é considerada apropriada para o estudo fenomenológico. Ele se protege contra a invasão de uma agenda teológica em sua pesquisa, restringindo suas observações a objetos religiosos e, portanto, a questões que, para ele, são de interesse especificamente preliminar e, portanto, a-teológico. Ele mantém uma perspectiva a-teológica sobre esses dados por meio de uma evitação daqueles fenômenos que, para ele e para a religião cristã, carregam uma carga teológica.

 

III. A ABORDAGEM ANTIRREDUCIONISTA DA FENOMENOLOGIA DE CHANTEPIE

 

III.I O REDUCIONISMO E A CIÊNCIA DA RELIGIÃO

 

          A fenomenologia da religião de Chantepie é, em certo sentido, uma resposta a outras abordagens que também se propõem como ciências da religião. A ciência da religião foi fundada por Max Müller. De acordo com Müller, o estudo da ciência da religião a fim de ser científico deveria ser erigido sobre a fundação da ciência positiva. Para ele, os critérios de positividade no estudo da religião poderiam ser atendidos por uma filologia comparada. Com essas descobertas no campo da filologia comparada, ele sentiu que poderia ser construída uma ciência da mitologia e uma ciência da religião que repousariam sobre um fundamento tão sólido e seguro quanto o de qualquer das ciências indutivas.

          Ao estudar os mitos, Müller estava preocupado em explicá-los, buscando entender como a mente humana criou coisas irracionais como os deuses.  A visão de Müller é reducionista pois vê a mitologia apenas como uma doença infantil inevitável no desenvolvimento da linguagem. Chantepie, por sua vez, se opõe tanto ao reducionismo quanto às teorias do desenvolvimento da religião quanto à invasão de uma agenda teológica em sua pesquisa.

 

III.II. A COMPLEXIDADE DO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO DE CHANTEPIE

 

         Chantepie considera difícil definir o objeto da religião. Em sua investigação, ele encontra rituais que não têm relação com qualquer tipo de objeto e ideias religiosas, enquanto em outros casos um objeto religioso é o foco dos rituais. Em alguns casos, o objeto religioso é eclipsado pelo ritual e pela prática religiosa. Embora a crença em Deus ou em algum tipo de ser divino possa parecer central para qualquer tipo de religião, ele encontrou casos em que o sucesso das orações aos deuses não depende deles em absoluto, mas das fórmulas recitadas e dos atos realizados.

          Para Chantepie, os fenômenos religiosos são múltiplos, amplos e complexos. O mesmo se aplica às suas origens. A religião não pode ser explicada simplesmente dizendo que ela é uma invenção política de uma elite sacerdotal ou de governantes. Ao contrário, é a religião que tornou possível a existência de sacerdotes. Ele também discorda da ideia de que a religião surge de uma ilusão, neurose ou loucura. Ele é crítico da explicação psicológica de que a religião é uma forma de lidar com o medo. Ele também discorda de classificações simplistas das religiões, tais como dividi-las entre “verdadeiras” e “falsas”, “naturais” e “reveladas”, “básicas” e “evoluídas”, “monoteístas” e “politeístas”.

 

III.III. A QUALIDADE DISTINTIVA DO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO DE CHANTEPIE

 

          Chantepie fez um esforço para diferenciar a religião de outros fenômenos intelectuais e culturais, considerando, no entanto, a natureza complexa e múltipla do fenômeno religioso. Dizer que uma divisão da religião deve ser baseada em "características essenciais" do processo religioso é sugerir não apenas que os fenômenos religiosos são amplos ou múltiplos, mas que eles possuem qualidades ou aspectos que são de alguma forma distintos.

          Ele observa, por exemplo, que a religião não pode ser entendida simplesmente como uma filosofia. Chantepie acredita que é um erro considerar a religião simplesmente uma filosofia popular ou uma explicação popular do mundo. Na religião, ele não encontra sistema de doutrinas comuns, e grande parte da doutrina religiosa não é uma tentativa de explicar o mundo. Ele também pontua que a religião não pode ser compreendida simplesmente como uma moral. Embora haja uma conexão essencial entre religião e moralidade, trata-se de campos distintos de modo que a moralidade não pode ser considerada a essência da religião. A opinião de Chantepie é que eles são fenômenos independentes, que foram separados em sua origem e tornaram-se associados apenas com o passar do tempo.

 

III.IV. FENOMENOLOGIA E O ESTUDO CIENTÍFICO DA RELIGIÃO

 

         Na obra de Chantepie não encontramos nenhum tratamento geral da sociologia, antropologia ou psicologia como abordagens da religião, mas encontramos referências ocasionais à "escola antropológica de Tylor", à “Sociologia de Spencer” e à “escola de Müller de mitologia comparativa". Em relação à antropologia de Edward Tylor, ele pretende explicar os fenômenos religiosos como fundados no animismo. Assim, o animismo seria uma forma rudimentar de religião a partir da qual as religiões mais complexas se desenvolveram. Chantepie critica essa perspectiva como especulativa. Ela parte da suposição de que os povos selvagens que vivem hoje nos dariam uma ideia correta de como era o homem pré-histórico primitivo. Ele critica essa noção porque ela pressupõe que os povos ditos selvagens que hoje existem estão presos no passado, que porque eles não têm escrita, logo eles não têm história.

          Em relação à sociologia de Herbert Spencer, ele acreditava que a primeira concepção de um ser sobrenatural foi a ideia de alma como um elemento que sobrevive à morte do corpo. E que o animismo surgiu por uma projeção do homem de que os seres naturais tinham uma alma assim como ele. Aplicando o princípio da evolução, Spencer entende que todas as religiões se originaram em uma mesma fonte. Para ele todos os deuses se originaram da ideia de espíritos e os espíritos, por sua vez, se originaram da ideia de almas que sobrevivem à morte do corpo. Chantepie entende que a teoria de Spencer de que a origem da religião está na veneração da alma dos mortos é uma forma de evemerismo, a ideia de que a religião tem sua origem na veneração de homens. Essa teoria já era considerada ultrapassada e que não condiz com os fatos, já que a ligação da religião com a veneração de almas ancestrais não é uma regra universal. Ademais, Chantepie critica Spencer por sua teoria evolucionária, já que ela adota uma visão mecanicista de como o universo funciona.

         Por fim, em relação à escola de mitologia comparada de Max Müller, Müller entendia mitologia e religião como coisas distintas. A mitologia estaria ligada a uma mente não saudável, enquanto a religião teria como essência uma percepção do infinito. Contra Müller, Chantepie argumenta que a mitologia pertence à religião. Ele ainda observa que no estudo da mitologia, é necessário distinguir a "substância original de um mito" de seu desenvolvimento posterior na literatura, arte plástica ou teologia sacerdotal. Isso faz com que o estudo comparativo da literatura sobre os mitos nos dá informações limitadas sobre a mitologia dos povos antigos, já que o material tradicional sobre os mitos foi transformado pelas nações em seu desenvolvimento histórico.


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