FENOMENOLOGIA CRÍTICA - TEXTO DE LISA GUENTHER (TRADUÇÃO)
A fenomenologia é uma prática filosófica de reflexão sobre as estruturas transcendentais que tornam possível e significativa a experiência viva da consciência. Ela inicia-se colocando entre parênteses a atitude natural, ou a suposição ingênua de que o mundo existe à parte da consciência e “reduzindo” a experiência cotidiana do mundo às estruturas básicas que constituem seu significado e coerência. O propósito dessa redução não é se abstrair da complexidade da experiência comum, mas antes conduzir (reducere) a reflexão de uma absorção acrítica no mundo para uma compreensão rigorosa das condições de possibilidade de qualquer mundo determinado. A mais básica dessas condições é o ego transcendental; não há experiência e, portanto, nenhuma experiência significativa, sem que haja um sujeito que viva essa experiência. Esse “sujeito” não é um simples "cogito" ou um “eu penso”; trata-se, em sua formulação mais básica, de uma relação ou orientação daquele que pensa para o pensamento. Em outras palavras, o "cogito" já é sempre um "cogito cogitatum". Eu não apenas penso, eu penso pensamentos, eu sinto sentimentos, eu lembro de lembranças e assim por diante.
Essa descoberta tem consequências sobre como nos
entendemos como sujeitos. Se eu não sou apenas um simples "cogito",
mas uma relação ou orientação enquanto um ato intencional (o pensar) em direção
a um objeto intencional (o pensado), então, mesmo no nível da individualidade
absoluta, o ego não existe como um ponto isolado, mas sim como um vetor ou uma
flecha que aponta para além de si mesmo em tudo o que pensa e faz. Se tomarmos
essa orientação dinâmica como nosso ponto de partida filosófico, uma série de
problemas aparentemente intratáveis se dissolverá. Torna-se um absurdo
perguntar-se como o "cogito" sai de si para se conectar a um mundo ou
se existem “outras mentes”, porque o ato de pensar sempre já implica uma gama
de pensamentos, cujo horizonte aberto define o conceito fenomenológico de
mundo. Em vez de bater nossas cabeças filosóficas contra a redoma do
solipsismo, a fenomenologia clássica nos dá uma linguagem para articular as
relações sem as quais não poderíamos ser quem somos ou compreender o que
vivenciamos. Ela ilumina as estruturas transcendentais nas quais confiamos para
dar sentido às coisas, mas que rotineiramente deixamos de reconhecer. Em outras
palavras, a fenomenologia nos aponta uma direção crítica.
No entanto, a fenomenologia clássica permanece
insuficientemente crítica por deixar de fornecer uma descrição igualmente
rigorosa de como as estruturas históricas e sociais contingentes também moldam
nossa experiência, não apenas empiricamente ou de forma fragmentada, mas de
modo quase transcendental (“q-transcendental"). Essas estruturas não são a
priori no sentido de serem absolutamente anteriores à experiência e operarem da
mesma maneira independentemente de contextos específicos, mas desempenham um
papel constitutivo na formação do significado e do modo como se dá nossa
experiência. Estruturas como o patriarcado, a branquitude e a
heteronormatividade permeiam, organizam e reproduzem a atitude natural de
maneiras que vão além de qualquer objeto particular de pensamento. Não se trata
daquilo que se vê, mas sim de formas de ver, e mesmo de formas de construir o
mundo, trata-se de levar em conta formas que passam desapercebidas quando não
se constrói uma prática sustentada na reflexão crítica. Não há nada necessário
ou permanente nessas estruturas, e elas nem mesmo operam de maneiras estáveis e consistentes em todos os contextos; mesmo dentro de um dado momento histórico,
sujeitos posicionados de forma diferente tendem a ter relações divergentes com
estruturas sobrepostas. E, no entanto, essas estruturas geram as normas do
mundo da vida e a atitude natural daqueles que as habitam. A fenomenologia
clássica negligencia essas estruturas por sua conta em risco, a partir da
suposição de que elas fazem parte do que deve ser colocado fora de circuito
pela atitude fenomenológica.
A perspectiva da fenomenologia crítica levanta uma
série de questões: O que a fenomenologia pode nos ensinar sobre a experiência
viva de poder e opressão e o papel das estruturas sociais
"q-transcendentais" na formação dessa experiência? O que seria
necessário para que a fenomenologia se tornasse crítica, não apenas da
suposição ingênua de que o mundo existe à parte da consciência, mas também da
suposição ingênua de que se poderia dar uma descrição rigorosa da consciência
sem abordar as estruturas sociais contingentes que normalizam e naturalizam as
relações de poder em qualquer mundo determinado? E se a fenomenologia se torna
crítica, o que ela tem a contribuir para os discursos e práticas contínuas de
crítica político-social? A fenomenologia crítica pode apenas acompanhar essas
discussões ou pode ela também abrir novas e potentes direções para o pensamento
e a ação?
TRAÇOS DE TEORIA CRÍTICA NA FENOMENOLOGIA
Muitos
pensadores têm escrito sobre a experiência. Mas o que torna um relato da
experiência uma descrição fenomenológica? Mais especificamente, o que o torna
um recurso útil para a fenomenologia crítica? Em seu ensaio marcante, "A
poesia não é um luxo", a feminista negra Audre Lorde define a poesia como
"destilação reveladora da experiência":
“A qualidade da luz sob a qual
analisamos nossa vida tem efeito direto na forma como vivemos, nos resultados
obtidos e nas mudanças que desejamos provocar por meio de nossa vida. É sob
essa luz que damos forma às ideias que nos fazem buscar nossa magia, para então
torná-las realidade. Isso é a poesia como iluminação, pois é através da poesia
que nomeamos essas ideias que – até o poema – não têm nome nem forma, estão
prestes a nascer, mas já foram sentidas. A destilação da experiência da qual a
verdadeira poesia brota dá à luz o pensamento, do mesmo modo que o sonho dá à
luz o conceito, o sentimento dá à luz a ideia, o conhecimento da à luz
(precede) a compreensão.”
Embora Lorde não identifique seu método como
fenomenologia, ou mesmo como filosofia, suas reflexões sobre a experiência
oferecem uma inspiração poderosa para a fenomenologia crítica. Sua consideração
sobre a "qualidade da luz sob a qual analisamos nossa vida" diz
respeito às condições da reflexão crítica, tanto no sentido de uma condição de
possibilidade quanto no sentido de um horizonte ou contexto que molda o que
pode ser visto e o modo como se dá essa visão. Para Lorde, a prática do
escrutínio crítico é motivada pelo sentimento de algo que importa para alguém,
e é seguindo esse sentimento e se empenhando em nomeá-lo que a poesia (e
possivelmente a filosofia) emerge. Para Lorde, a poesia é uma prática
descritiva de iluminação e articulação da própria experiência e, também, uma
prática transformadora de mudança das condições sob as quais a experiência se
desenvolve. As dimensões descritivas e transformadoras desta prática invocam-se
reciprocamente; não há mudança significativa sem uma interrogação de sentido e,
além disso, o processo de escrutinar e nomear a experiência de alguém já começa
a transformar seu sentido. Um sentimento expresso poeticamente não é o mesmo
que um sentimento sem nome e sem forma; quando a qualidade da luz pela qual
examinamos nossas vidas se torna um objeto de reflexão, sua qualidade já
começou a se transformar.
Em termos fenomenológicos, poderíamos pensar nessa
"qualidade de luz" como a tonalidade ou disposição afetiva que tanto
motiva quanto contorna a experiência significativa de uma pessoa como um
ser-no-mundo corporificado. Esta tonalidade afetiva não pode ser entendida à
parte da localização social em um mundo da vida histórico específico, todavia a
localização social não é redutível a uma força causal ou determinante. Por
exemplo, um investimento afetivo na branquitude como propriedade, seja de modo
consciente ou inconsciente, trará uma qualidade de luz diferente para a
experiência e gerará uma compreensão diferente de mundo do que um investimento
afetivo em questões relativas à negritude, às questões indígenas, à crítica
latino-americana ou à abolição da supremacia branca. Mas a estrutura da
branquitude como propriedade não é um destino inexorável que condena os brancos
ao racismo e nos absolve da responsabilidade de nos tornarmos críticos a essa
estrutura. Ao invés disso, uma fenomenologia crítica da branquitude inspirada
pelo relato de Lorde da poesia teria que examinar a qualidade da luz que
ilumina o mundo de uma perspectiva branca e nomear os sentimentos que motivam
essa perspectiva, com a esperança de provocar uma mudança, não apenas na
estrutura da branquitude, mas na forma de mundo que a branquitude construiu.
Isto é poesia como iluminação e transformação: uma maneira de tornar os
sentimentos, de outra forma incipientes, mas potentes, disponíveis para um
exame mais aprofundado, não apenas como um processo de introspecção individual,
mas como uma prática coletiva de interrogatório crítico e transformação social.
O trabalho emocional do escrutínio crítico não é apenas uma questão de reflexão
teórica desinteressada; o significado de nossas vidas e a forma de nosso mundo
dependem desse escrutínio, e pode ser exaustivo. Existem muitos obstáculos e
dificuldades que surgem para desestimular e atrapalhar o escrutínio crítico,
mas a motivação para persistir também é poderosa, uma vez que o significado e a
materialidade de nossas vidas estão em jogo.
Há muito para um aspirante a fenomenólogo crítico
aprender com o relato de Lorde sobre a poesia como "uma destilação
reveladora da experiência". Lorde compartilha alguns insights básicos com
a fenomenologia clássica: a saber, que a experiência é vivida, que ela
pressupõe um sujeito cuja perspectiva importa, que essa perspectiva é parcial e
que é possível e necessário para um sujeito da experiência examinar ou refletir
sobre o significado e motivação de sua experiência. Mas Lorde também vai além
da agenda descritiva da fenomenologia clássica de maneiras que são instrutivas
para a fenomenologia crítica; a reflexão ou o escrutínio crítico não é um fim
em si mesmo para Lorde, mas parte de um processo de passagem do sentimento à
linguagem e à ação, sem deixar nenhum desses momentos para trás.
O QUE É A FENOMENOLOGIA
CRÍTICA?
A fenomenologia crítica vai além da fenomenologia clássica,
refletindo sobre as estruturas sociais quase-transcendentais
("q-transcendentais") que tornam nossa experiência do mundo possível
e significativa, e também se engajando em uma prática material de
"reestruturação do mundo" a fim de gerar possibilidades novas e
libertadoras para formas significativas de experiência e existência. Nesse
sentido, a fenomenologia crítica é tanto uma forma de fazer filosofia quanto
uma forma de abordar o ativismo político.
Como prática filosófica, a fenomenologia crítica suspende
as explicações do senso comum da realidade para mapear e descrever as
estruturas que tornam essas explicações possíveis, para analisar a maneira como
funcionam e para abrir novas possibilidades para repensar e reestruturar o
senso comum. Trata-se de uma forma de encontrar até mesmos os vestígios de
questões históricas, que mesmo não estando mais presentes de maneira explícita,
ainda estruturam a forma como os sentidos emergem na sociedade.
Como prática política, a fenomenologia crítica é uma
luta pela libertação das estruturas que privilegiam, naturalizam e normalizam
certas experiências do mundo enquanto marginaliza, patologiza e desacredita
outras. Essas estruturas existem em muitos níveis: social, político, econômico,
psicológico, epistemológico e até ontológico. Ambos estão "lá fora"
no mundo, nos padrões documentados e nos exemplos de dominação racista heteropatriarcal
e, também são intrínsecos à subjetividade e intersubjetividade, moldando a
maneira como percebemos a nós mesmos, aos outros e ao mundo. Em outras
palavras, eles são tanto os padrões que vemos quando estudamos algo como, por
exemplo, as taxas de encarceramento, quanto os padrões de acordo com os quais
enxergamos a realidade. Como prática política transformadora, a fenomenologia
crítica deve ir além de uma descrição da opressão, desenvolvendo estratégias
concretas para desmantelar estruturas opressoras e criar ou amplificar formas
diferentes, menos opressivas e mais libertadoras de ser/estar-no-mundo.
Em outras palavras, o objetivo final da fenomenologia
crítica não é apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo.
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Referência: WEISS, Gail, MURPHY, Ann V.; SALAMON, Gayle. 50 Concepts for a Critical Phenomenology. Evanston: Northwestern University Press, 2020.
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