ENCARNAÇÃO - MICHEL HENRY (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro Encarnação: uma filosofia da carne do fenomenólogo francês, Michel Henry. Neste livro, Michel Henry trabalha a questão da encarnação em relação à noção de carne, entendida não como matéria inerte, mas como experiência de si mesmo. Para fazer isso, o filósofo apresenta o humano como ser encarnado e discute a encarnação em sentido cristão. Por fim, o autor apresenta a carne tanto como lugar do pecado como da salvação. O artigo, assim como o livro, se divide em três partes: (i) a inversão da fenomenologia; (ii) fenomenologia da carne; (iii) fenomenologia da encarnação: a salvação em sentido cristão. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
I. A INVERSÃO DA FENOMENOLOGIA
O termo fenomenologia
é formado por dois constituintes gregos: phainomenon (aquilo
que se mostra; o ato de aparecer) e logos (discurso, saber,
ciência), designando, assim, um saber concernente ao fenômeno, uma ciência
deste. O fenômeno qualifica o objeto dessa ciência, enquanto Logos
indica o método que convém aplicar a esse objeto. É importante
distinguir no fenômeno aquilo que é seu conteúdo do fato de ele
aparecer. A fenomenologia se diferencia das ciências em que seu objeto de
estudo não é precisamente o fenômeno (o que aparece), mas o ato de aparecer. A
Fenomenologia possui dois pressupostos fundamentais: (i) “a tanta
aparência, tanto ser”: o ser não é senão porque o aparecer aparece e na
medida em que o faz; (ii) “direto às coisas mesmas”: a fenomenologia
direciona seu olhar considerando o dado imediato tal como aparece em si mesmo,
suspendendo interpretações prévias.
A fenomenologia clássica possui
uma limitação pois reduz todo aparecer ao aparecer do mundo. O retorno
às coisas mesmas é pensado pela fenomenologia clássica como marcado pela intencionalidade,
um direcionamento da consciência para além de si mesma, isto é, em direção a um
objeto transcendente. No entanto, fica sem resposta como essa
intencionalidade que sempre se relaciona a algo para além de si mesma pode
revelar a si mesma. A fenomenologia de Martin Heidegger também comete o
mesmo erro de limitar o horizonte da fenomenalidade ao aparecer do mundo. Tudo
que aparece se mostraria no horizonte de visibilidade do mundo. O próprio
aparecimento do mundo se daria no âmbito de uma temporalidade que é
marcada pela exteriorização. Mas se esse aparecer é marcado pela exteriorização,
se ele põe a ver algo que não é ele mesmo, como esse aparecer se mostra a si
mesmo?
A principal tese de uma fenomenologia
da carne é a de que nenhuma carne é suscetível de aparecer no aparecer do
mundo. Para compreender essa tese é preciso apresentar os traços decisivos
do aparecer do mundo, são eles: (i) tudo o que se mostra no mundo se
mostra como o exterior: a estrutura temporal do que se mostra no mundo é a
exterioridade, a vinda para fora de um Fora, que se mostra como outro, como
diferente; (ii) o aparecer do mundo é indiferente ao que se mostra: o
aparecer do mundo ilumina tudo o que ele ilumina sem fazer acepção de coisas ou
de pessoas numa neutralidade aterradora; (iii) o aparecer do mundo é incapaz
de conferir existência ao que se mostra: o aparecimento do mundo é
impotente de trazer à existência o que ele desvela, o desvelamento desvela,
descobre, mas não cria.
A interpretação da fenomenologia
clássica encontra também sua limitação na linguagem. A grande descoberta
da fenomenologia foi ter operado a subordinação dos fenômenos da linguagem à fenomenalidade
pura. Isso significa que não podemos falar de coisa alguma sem que ela se
mostre previamente a nós. À possibilidade última da linguagem dá-se o nome de
Logos, a Palavra originária que fala em toda palavra. Por conseguinte,
Fenomenalidade e Logos não dizem afinal de contas senão uma mesma coisa. É
próprio da linguagem do mundo que ela se refira a um referente exterior
a ela mesma cuja realidade não pode fundar.
Dada a impotência ontológica do
mundo em conferir existência aquilo que nele se desvela, segue-se o
paradoxo de que o aparecer do mundo desrealiza no princípio tudo que se
mostra nele. O fluxo temporal de eventos que deslizam ao olhar da
consciência faz ver uma série de coisas, mas é impotente no que diz respeito a
lhes conferir realidade. A temporalidade, em sua investigação fenomenológica,
conduz ao problema da impotência ontológica de fundo do mundo e da necessidade
de se admitir uma fenomenalização originária, que é a da autoimpressão
primordial.
O tempo é um
fluxo que nadifica, um desfilar de impressões que caminham continuamente para a
aniquilação. Isso se dá porque a forma desse fluxo é marcada pela Diferença.
A síntese do tempo é tríplice, envolvendo a retensão, a consciência
do agora e a protensão. A temporalização da temporalidade
temporaliza a diferença ontológica. Essa diferença significa a operação de uma
exteriorização, na qual tudo se condena a uma irrealidade. Nessa irrealidade, o
presente só pode surgir como um limite ideal entre duas nadificações. Essas
nadificações desvelam a impotência ontológica do aparecer do mundo e a passividade
da síntese temporal.
A síntese do
tempo é passiva porque não é feita por ação do espírito, mas se faz no
espírito. A passividade e a aniquilação do fluxo temporal significam que o
tempo é incapaz de dar o que nele aparece. Se isso é assim, para que o fluxo
temporal não seja um vazio, é preciso uma realidade impressional mais profunda,
não mais uma "heteroimpressão", mas uma "autoimpressão".
Essa autoimpressão é a do autoaparecimento primordial, em que no
experimentar a si mesma, a impressão adere a si, nunca escapando dela mesma. O
caráter impressional da autoimpressão é o que permite superar a desrealização e
a impotência do fluxo temporal.
Podemos
falar, assim, de uma impressão originária. Por originário
entende-se o que vem a si antes de qualquer intencionalidade e independente
dela. Origem, em fenomenologia, designa a origem do ser, a origem do ser
é o autoaparecer. Não se trata, assim, do aparecer do aparecer do mundo,
mas do aparecer da Vida, que é a própria vida em sua fenomenalização
originária. O aparecer originário é a Vida que se experimenta imediatamente a
si mesma antes de toda abertura, antes que difira de si no deslizar para fora
de si do futuro, do passado e do presente. Uma Vida afetiva que sofre e
que afeta a si mesma numa afetividade originária, em uma
autoimpressionalidade vivente.
A questão do
autoaparecer original pode ser percebida na filosofia de Descartes. Toda
dúvida marcada por um duvidar de algo que não é ela mesma, é marcada pela
incerteza. O campo da incerteza é superado quando se pensa a possibilidade de a
dúvida duvidar de si mesma, de uma autodúvida, quando se trata, pois, do
pensamento que se pensa a si mesmo encontramo-nos diante de uma certeza
indubitável. Em “penso, logo existo”, o “eu
penso” significa, pois, “eu me apareço a mim mesmo”. Assim, é sobre a base do
autoparecer que se funda o ser, é somente pelo efeito desse autoaparecer que se
pode dizer em seguida “logo, eu sou”.
Para superar
as limitações da fenomenologia clássica que restringe o aparecer ao aparecer do
mundo, é preciso estabelecer a autorrevelação originária do autoaparecimemto
da vida como fundamento do método fenomenológico. Não se pode acessar a
vida por meio da exterioridade, o único acesso à vida é dado nela mesma. É
impossível procurar no mundo, entre os mortos, o que decorre da vida. A vida
não se mostra no horizonte de visibilidade do mundo e, nesse sentido, ela é
invisível. Viventes, somos seres do invisível, não somos inteligíveis senão
no invisível, a partir dele. A vida é, pois, somente inteligível a partir de si
mesma numa Arqui-integibilidade que é a da Vida invisível. Na
Arqui-integibilidade a própria vida se torna inteligível.
A
Arqui-integibilidade da Vida se dá a partir da autogeração na Vida do Primeiro
Si Vivente, o Verbo. A geração do Verbo, único meio pelo qual a vida
chega a si mesma e não se experimenta a si mesma senão nele constitui a si
mesma como uma autorrevelação que constitui a Arqui-integibilidade enquanto uma
Arqui-gnose. Em sua Arqui-integibilidade, a Vida vem a si antes de todo
pensamento, tem acesso a si mesma sem pensamento. Uma Arqui-integibilidade que
é uma Autointegibilidade, uma autorrevelação.
Assim, a inversão
da fenomenologia consiste em que não é o pensamento que nos dá acesso a
vida, é a vida que permite ao pensamento ter acesso a si, experimentar a si
mesma, sendo o que é a cada vez. O pensamento não pode conhecer a vida
pensando, conhecer a vida é próprio da vida e unicamente dela. A inversão da
fenomenologia pensa a primazia da Vida sobre o pensamento. É sempre a vida que
torna possível sua auto-objetivação no pensamento, como condição interior tanto
desse pensamento quanto de seu objeto.
II.
FENOMENOLOGIA DA CARNE
Segundo a fenomenologia da vida,
existem dois modos fundamentais e irredutíveis de aparecer: o do mundo e o da
vida. O aparecer do corpo no mundo se confunde com a experiência corrente desse
corpo, a ponto de se identificar com ela.
O senso comum, a representação habitual que os homens fazem de seu
corpo, é o de que ele é um objeto do mundo. O aparecer do mundo passa, assim, a
determinar a priori a estrutura fenomenológica do corpo mundano.
O corpo mundano é, todavia, um corpo sensível. As qualidades sensíveis
do corpo, no entanto, não pertencem ao aparecer do mundo. O mundo, pensado como
um mundo sensível, não recebe se conteúdo sensível de si mesmo. O mundo
deve seu conteúdo sensível à sensação, isto é, à vida.
No entanto, a ciência moderna
a partir da redução operada por Galileu, exclui do mundo suas qualidades
sensíveis, as entendendo como meras aparências. Assim, o corpo sensível é
substituído pelo corpo científico, pensado enquanto corpo material
extenso cujas figuras e formas são compreensíveis geometricamente. Nasce assim
a pretensão de uma ciência geométrica da natureza material que passe a
constituir o verdadeiro saber a respeito do ser humano. Tomada as sensações
como meras aparências, toda a vida tal como a experimentamos se transforma, de
um só golpe, em uma ilusão.
No entanto, o mundo da ciência é um
mero mundo de idealidades, o mundo em que os seres humanos vivem é um mundo
sensível. No mundo sensível há o corpo sensível. Esse corpo sensível deve sua
existência, não ao aparecer do mundo, mas à sensibilidade. Assim, somos
remetidos de um corpo sensível mundano, objeto do mundo, a um corpo de outra
ordem: um corpo transcendental. Transcendental no sentido de que
esse corpo é condição de possibilidade do corpo mundano. Nosso corpo é
transcendental justamente no sentido em que ele torna possível tudo que é
visto, ouvido, tocado por ele, o conjunto de qualidades e de objetos sensíveis
que compõem a realidade do mundo sensível.
O que temos diante de nós não é
mais, pois, um corpo exterior, mas uma carne, que não advém jamais em
nenhum lugar senão na vida. A vida revela a carne engendrando-a, como a que
nasce nela, formando-se e edificando-se nela, extraindo sua substância
fenomenológica pura da própria substância da vida. Trata-se, assim, de uma carne
impressional e afetiva, cuja impressionalidade e afetividade não provém
jamais de outra coisa senão da impressionalidade e da afetividade da própria
vida.
A vinda vem a si onde há uma carne,
de modo que é unicamente porque aí onde se cumpre toda vinda a si e toda vida
que essa vinda originária a si mesma se cumpre no Arqui-páthos de
uma Arqui-carne. A carne é justamente o modo como a vida se faz Vida.
Não há Vida sem uma carne, mas também não há carne sem Vida. Dado que Deus é a
Vida, ele é uma Arquipassabilidade, isto é, sua natureza consiste na
possibilidade apriorística de se experimentar a si mesmo no Arqui-Phátos
de uma Arqui-Carne.
É comum os
teólogos dizerem que Deus é "impassível". No entanto, nenhum cristão
se relaciona com um Deus assim. O Deus cristão ama, se entristece, se alegra,
se solidariza com o nosso sofrimento. Mas é mais do que isso: Deus é Vida e
Vida é amor. A Vida é um automovimento que se afeta a si mesma, é uma
experiência eminentemente patética e impressional. A afetividade é a substância
da Vida absoluta e, em se tratando de Deus, devemos falar de uma
Arquipassibilidade. Deus não só não é Impassível, como ele é a
Arquipassibilidade originária que afeta a si mesma na experiência que a Vida
faz de si.
A
geração da carne que é a nossa é estritamente paralela à de nosso Si
transcendental que faz a cada vez de nós um “eu” ou “ego”.
Não há Si, não há eu, não há ego sem uma carne, mas também não há carne que não
traga em si um Si. Por conseguinte, não há carme que não seja de um Si
particular. Como a carne não é nada diferente da possibilidade mais interior de
nosso Si, este é um Si unitário. Não há, pois, dualismo. Eu e Carne não
constituem senão algo uno. Se Eu e Carne não constituem senão algo uno, é
porque eles provêm, ambos, da Vida, não sendo nada além das modalidades
fenomenológicas originárias e essenciais segundo as quais a vida vem a si e é a
vida. Chamamos de nascimento o vir à vida enquanto Si transcendental
vivente, experimentando-se a si mesmo em sua carne do modo como se experimenta
toda carne. Não há nascimento sem carne, mas também não há carne sem
nascimento.
A
realidade da carne precisa ser definida, não a partir da matéria do mundo, mas
com base na afetividade da vida, que se experimenta no sofrimento.
Quando se pensa na Encarnação do Verbo, não se deve supor que o Verbo
assumiu um corpo do mundo estranho à vida. A carne em que vem o Verbo vem do
próprio Verbo, isto é, da Vida. Longe da Vida ser incapaz de tomar carne, ela é
a condição de possibilidade da carne. A Vida é a condição de possibilidade da
carne e toda carne não é possível senão na Vida. Não há carne senão se
autoafirmando e se autolegitimando quanto à sua existência pelo fato de ela ser
carne vivente, trazendo em si a Vida, essa Arqui-integibilidade que faz dela um
fundamento inabalável.
O
corpo mundano só é possível uma vez pressuposta a carne revelada a si mesma
como carne vivente na autorrevelação patética da vida. Todo poder do
qual dispõe o eu se cumpre na Vida, no modo como a Vida vem pateticamente a si.
A possibilidade de todo poder é sua vinda a si mesmo na forma de uma carne. E a
carne não vem a si senão na vinda a si da Vida absoluta, na Arqui-carne de um
Arqui-poder. É antes de tudo na Vida que se encontra o poder de realização
de qualquer movimento. O mover encontrado na Vida é um movimento
imanente, isto é, o movimento que move a si mesmo, um automovimento.
Dada a afetividade da Vida, todo poder é na vida patético, podendo ser
designado, assim, como pulsão. Assim, todo agir se dá na imanência
patética da carne.
A
imanência dos poderes na carne faz dela o lugar de uma memória original.
Por memória original entende-se a memória de um corpo que se lembra, a cada
vez, de como se mover a fim de atingir determinada finalidade. Esse movimento
não é o deslocamento de um órgão objetivo ou uma lembrança do pensamento, antes
é o automovimento de um poder de preensão que lhe é revelado na autodoação
da corporeidade originária. Trata-se, portanto, não de uma memória do
pensamento, mas de uma memória corporal. Cada um de nossos poderes é o
de uma carne que nada separa de si, sempre presente a si em sua memória sem
afastamento, sem pensamento, sem passado, sem memória e, assim, uma memória
imemorial.
No
seio de nossa corporeidade originária, o automovimento desta em seu cumprimento
imanente esbarra num termo que lhe resiste continuamente. A isso que resiste,
dá-se o nome de contínuo resistente. É esse contínuo resistente que
define a primeira exterioridade encontrada por nós no desdobramento interior de
nossos poderes, desvendando um novo corpo. Esse corpo foi chamado por Maine
de Biran de corpo orgânico. O corpo orgânico possui três
propriedades: (i) pré-sensibilidade: o corpo orgânico escapa aos
sentidos, não podendo ser tocado; (ii) invisibilidade: o corpo orgânico
não pode ser visto, possuindo uma realidade invisível; (iii) extensão
orgânica: o corpo orgânico possui uma extensão não-espacial, delimitada por
limites práticos. Ao limite prático do
corpo orgânico dá-se o nome de pele. A pele é a fronteira entre o
universo visível de nossa carne e o corpo percebido do exterior.
III. FENOMENOLOGIA DA ENCARNAÇÃO: A
SALVAÇÃO NO SENTIDO CRISTÃO
A
carne nada mais é do que a passibilidade de uma vida finita que encontra
sua possibilidade na Arquipassibilidade da Vida infinita. Essa relação
de condição de possibilidade da Vida em relação à carne é paralela à do ego. Antes
do ego, o que opera é a Ipseidade absolutamente originária em que a
Vida absoluta vem a si no Si de seu Verbo. Do mesmo modo, antes da carne, há a
Arquicarne, a Arquipassibilidade sem a qual nenhum viver é concebível. Assim, o
“Antes do ego” e o “Antes da carne” constituem algo uno: é um estreitamento
patético que faz da carne uma carne e do ego um ego, a autoimpressionalidade
para a carne e a Ipseidade para o ego.
A
Vida é Deus, que engendra em seu seio o Primeiro Si vivente. Esse vivente, esse
Si, essa carne não vem senão no processo da Vida absoluta (o Pai) que
vem a si em seu Verbo (o Filho), experimentando-se nele, que se
experimenta nela, na realidade recíproca que é seu Espírito comum (o
Espírito Santo). É assim que, em oposição ao Deus formal do monoteísmo, o Deus
trinitário do Cristianismo é o Deus real que vive em cada Si vivente, sem o
qual nenhum vivente viveria, e que cada vivente testemunha em sua própria
condição de vivente. A Encarnação pela qual o Verno se fez carne nada mais é do
que a autodoação da Vida absoluta na efetuação patética de sua Ipseidade no
Arqui-Si do Primeiro vivente.
Todo
o poder do qual nosso ego dispõe deve ser reportado à Vida. No entanto, o “eu
posso” padece de um esquecimento, esquece-se que a fonte originária
de seu poder não é ele mesmo, mas a vida. A tonalidade afetiva capaz de
arrancar o ego desse esquecimento é a angústia. A angústia, conforme
tratada por Søren Kierkegaard, se relaciona com a inocência, que
consiste na ignorância, o não saber nada do mundo, uma angústia diante do
nada. Pode-se falar, assim, de uma angústia secreta, uma angústia
que, afastada do mundo, nessa espécie de incógnito que lhe é consubstancial, se
experimenta mais fortemente a si mesma.
A
angústia também se relaciona com a liberdade. Nesse sentido, a angústia
não é senão a expressão paroxística da essência do Si, do phatos em que,
unido a si e tornando assim esse Si que ele é, ele se encontra investido para
sempre da possibilidade de poder que é sua liberdade infinita. Pode-se
falar, ainda, de uma angústia objetiva, que consiste na acumulação
quantitativa da angústia através das gerações, produzindo, assim, um
agravamento das condições em que o pecado se torna possível. O pecado é
um salto, um ato que processo de uma liberdade radical conferida ao
indivíduo no seu próprio processo de geração na Vida absoluta, a título de Si
transcendental ao qual sua liberdade é, assim, consubstancial.
A
angústia em seu redobramento coincide com o nascimento do desejo. O
desejo não é possível senão na angústia. O mundo do desejo é o mundo da
angústia. A relação ao termo da qual a angústia e desejo vão incorrer no pecado
é um caso particular da relação absolutamente geral e essencial que liga, no
princípio, Afetividade e Ação. Quando,
diante do corpo do outro, o desejo angustiado de encontrar a vida nele desperta
a angustiante possibilidade de poder fazê-lo, a força da angústia faz crer que
um salto produzirá o livramento da angústia. Assim, a angústia do pecado produz
o pecado.
O salto do pecado, no entanto, não
livra da angústia, por dois motivos: (i) o agente do pecado, o Si e seus
constituintes, sua capacidade de poder, sua liberdade de onde a angústia se
eleva, permanecem presentes; (ii) o pecado, ao invés de por fim a
angústia, a prolonga, pois a modificação da objetividade de nosso próprio corpo
objetivo carrega uma sensualidade latente que não cessa de aumentar seu
poder de fascinação. A esse mundo angustiante do desejo e do pecado dá-se o
nome de erotismo.
A relação erótica é uma relação
dinâmica e patética que se cumpre num plano de imanência absoluta, e tem lugar
na vida. Porque a vida é um experimentar a si mesma, é cada vez um Si. Na
relação erótica, há dois Si transcendentais em comunicação um com outro. Na sexualidade,
o desejo tropeça num fracasso insuperável. A fenomenologia do ato sexual
revela que o desejo erótico de atingir a vida do outro em si mesma, ali onde
ela atinge a si mesma em sua própria carne originária, fracassa em atingir seu
objetivo. É na imanência da pulsão que o desejo fracassa em atingir o prazer do
outro ali onde ele se atinge a si mesmo, é na dimensão da imanência radical da
vida, que pode ser chamada de noite dos amantes, que para cada um, o
outro está do outro lado de um muro que os separa para sempre.
É o fracasso do desejo na
noite dos amantes, sua inaptidão para unir-se com a vida do outro em si mesma,
que determina o projeto de compreender esta em seu corpo desnudo oferecido no
aparecer do mundo, o que leva a uma redução da relação erótica à sexualidade
objetiva. O lugar do encontro erótico deixa de ser considerado na vida, para
ser pensado em outro lugar, onde nenhuma vida é possível. Essa destruição ativa
e deliberada da realidade da Vida é o que chamamos de niilismo.
O salto do pecado em relação á vida,
trata-se de uma profanação. A profanação é um dizer à vida que ela se
reduz a um sexo indecente. Essa redução é um ato que cumpre a metamorfose
extraordinária de uma subjetividade num objeto inerte, o sexo pelo qual a vida
se exibiria a si mesma, afirmando, assim, que é nada mais que ele. Esse ato, no
entanto, é cumprido pela própria vida, de modo que se trata de uma autoprofanação.
A essa dinâmica erótica pertencem dois traços: (i) o masoquismo: em que
o espírito afirma em relação a si mesmo que ele não é nada senão uma
determinação objetiva, rebaixando-se ao nível de uma coisa, de um sexo; (ii)
o sadismo: consiste em o outro que goza o sofrimento daquele que se abaixa
a ponto de se afirmar como uma mera coisa estranha e indecente.
A efetuação fenomenológica mundana
da relação erótica reduzida a um comportamento sexual objetivo está ligado ao voyerismo.
O voyerismo aparece como uma continuação lógica do ato de desnudar que
dá a ver a carne identificada com um corpo e obrigada, desse modo, a se
comportar como realidade objetiva na comunicação intersubjetiva dos viventes. O
voyerismo consiste em que o que é visto, enquanto dado no mundo, cabe
ser visto por todos. Disso decorre a possibilidade da pornografia, que
consiste na profanação coletiva da vida. Disso se tem um projeto de objetivação
total que se encontra na prostituição, que não é antes de tudo um fato
social, mas um ato metafísico, em cuja publicidade, permanece uma finalidade
oculta. O voyerismo também pode levar à “troca de casais”, como
consequência da lógica de que os indivíduos assim como as coisas são
intercambiáveis.
O niilismo, a destruição ativa e
deliberada da realidade da vida, apresenta-se também na ciência moderna.
A ciência moderna fez nascer uma técnica inteiramente nova que tende a
substituir progressivamente a atividade subjetiva da vida por processos
inertes. No entanto, nenhuma carne pode ser examinada em si mesma à maneira de
um dado autônomo, pois a carne não advém senão da vida.
Em relação à vida, pode-se perguntar
qual é o seu sentido. Há, todavia, um erro nessa pergunta: a vida não
tem sentido, ela é sentido. A Vida é sem porquê, experimenta a si mesma
porque experimenta a si mesma, não tem que se mover para além de si, pois ela é
o automovimento imanente que se move a si mesmo. A vida não se move em direção
a um sentido além de si, pois não pode suportar nenhum fora de si, não tem nada
a ver com a exterioridade, não se deixa projetar para um desígnio. Nela não há
nenhum mover exteriorizador, nenhuma intencionalidade, nenhum direcionamento
para além de si mesma. Antes, a Vida é seu próprio Sentido, o Sentido da Vida é
a própria Vida. A Vida deseja a si mesma, ela é em si mesma e por si mesma.
A vida não deixa fora de si nenhuma
realidade exterior, pois ela traz, em si mesma, o princípio último de sua
própria inteligibilidade e justificação. É por isso que a vida se revela a si
mesma numa revelação patética imanente de si. A autorrevelação da
vida é sua autojustificação. A vida é boa, porque
experimentando-se a si mesma ela experimenta a fruição de si, o gozo de si
mesma, isto é, a felicidade.
Nós, seres humanos, fomos gerados na
vida. Deus formou o ser humano à sua imagem, o que significa que o ser humano
nunca foi posto fora de Deus. Assim como Deus, o ser humano é invisível.
Ninguém jamais viu a Deus, mas tampouco alguém jamais viu um ser humano, pois a
vida nunca é visível. O ser humano foi gerado, não criado, se por criado
entendemos o vir ao mundo. O ser humano veio à Vida. É nisso que ele é
semelhante a Deus, feito do mesmo material que Ele, assim como toda vida e todo
vivente.
No entanto, o ser humano se esquece
da sua condição de filho da Vida. A vida, então, é substituída por um ídolo.
Dado isso, a salvação consiste em reencontrarmos nossa condição de
Filho. Os Filhos adotivos, dos quais fala a Bíblia, são aqueles em que a
condição original de filhos foi restaurada. É a Encarnação do Verbo em nossa
carne finita que permite a nós o reencontro de nossa relação inicial com Deus.
A salvação opera uma deificação, uma identificação com a Vida. A
santificação é essa deificação, ser santificado é ser deificado, é
tornar-se não um santo, mas o Único Santo, que é Deus. Significa, ainda, a união
no corpo místico de Cristo, sem que percamos nossa individualidade.
A salvação que nos tona um só corpo
em Cristo, não aniquila nossa individualidade. No Cristianismo, a
individualidade de cada um não é só preservada, mas exaltada, o que permite a
experiência do outro. É por compartilharmos da mesma Vida, que a experiência
do outro é possível. Toda relação de um Si com outro Si requer um ponto de
partida que não é o Si, mas a comum possibilidade transcendental, que é a Vida
absoluta. É por isso que toda comunidade é religiosa e invisível, pois
se fundamenta na Vida.
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