PROLEGÔMENA A UMA ANÁLISE ONTOLÓGICA -EXISTENCIAL DA ANGÚSTIA

       O objetivo deste artigo é oferecer uma prolegômena à questão do ser para uma hermenêutica existencial do fenômeno a-semântico da angústia (angst). A questão é apenas fazer um ensaio a fim de estabelecer indagações iniciais para futuros estudos e análises existenciais a partir de algumas leituras. Logo, minha pretensão não é estabelecer uma análise fenomenológica exaustiva sobre a ontologia da angústia, mas sim colocar algumas questões e suspeitas existenciais a título de introdução.

ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA 

       Quando se fala de angústia, a verdadeira questão que precisa ser posta é a "questão do ser". O problema da existencialidade humana não é a luta de classes (marxismo), nem o mal-estar advindo da repressão das pulsões sexuais (psicanálise), nem a insuficiência filogenética (darwinismo), o problema humano é o que homem é. A relação entre essência e existência é de grande relevância para uma análise ontológico-existencial da angústia, visto que a questão do ser é profundamente significativa para a compreensão da disposição afetiva que é, por sua própria natureza, sem significado. É preciso perguntar sobre a ordem e relação que há entre essência e existência.
       A primeira questão que se coloca é: essência e existência são a mesma coisa? Em Kant a essência parece ser algo em separado e próprio, incognoscível ao sujeito, de modo que a fenomenologia do mundo não corresponde ao mundo em si mesmo, isto é, em sua essência. A distinção entre essência e existência aparece também no tomismo, quando se fala de ato (existência) e potência (essência). Em Sartre, a existência precede a essência. Heidegger, por outro lado, identifica a essência do Dasein com a própria existência.
       A minha suspeita é que a ideia heideggeriana de que a essência do Dasein é a existência, é um equívoco, a menos que se fale do único Ser absoluto, o qual destituído de potência, permanece como Ato Puro, no qual essência e existência coincidem-se. A verdadeira questão existencial, dolorosa da vida humana, é que a essência do Dasein é a in-existência. A ontologia do nada é o verdadeiro motivo que angustia (angst) o homem em sua trajetória existencial.
       O problema da identificação da essência e da existência do Dasein provocaria uma deificação do mesmo. Até Heidegger dizia que Deus é, mas só o Dasein existe. Pior ainda é pensar, como em Sarte, que a existência precede a essência, como se o homem fosse o próprio criador de seu significado ou o seu próprio deus. Aqui já vemos que as ontologias existenciais seculares caem no erro de ter como ponto modal um ídolo, elas são antropo-referentes.
      Numa perspectiva aristotélica teríamos que afirmar que a essência do homem precede sua existência. Primeiro, existe a possibilidade de ser (essência), potência que se atualiza em ato de ser (existência). Somente Deus, enquanto Ato puro, sem qualquer composição de potência, tem como essência a existência. E por isso. não é possibilidade de ser, mas o próprio Ser em ato, cuja essência é a existência. Por isso, Yahweh é Ser: "Eu sou o que sou". Ele não tem, Ele é. Nesse caso, temos de ver Deus como o Ser absoluto, cuja essência é a existência.
       Na medida em que o Dasein precisa ter sua existência sustentada pelo Absoluto, temos de concluir que ontologicamente sua tendência ou potência natural é não-ser. Essencialmente o Dasein não existe em si mesmo, ele existe contingencialmente. Suspeito, então, que a essência do Dasein é a in-existência.

SIGNIFICADO ESCATOLÓGICO DO SER-PARA-A-MORTE

      Se a essência do Dasein é a in-existência, ou seja, se sua tendência natural é o não-ser, faz todo sentido afirmar que o Dasein é ser-para-a-morte. Não só no sentido de que Ele pode morrer, mas sim que ele depende ontologicamente do Ser (essência-existência) para ser (essência em existência). É nesse sentido que para a questão: "O que é o ser?" A resposta ontológica-existencial-hermenêutica-semântica é: "Nada!"
       Existe uma incompletude do Dasein, pois a potencialidade de não-ser está sempre presente no seu horizonte de possibilidades existenciais enquanto ser contingente. O Dasein é o ente que sempre sendo pode deixar de ser. É um presente da presença na presença do presente que pode simplesmente vir a ser presente sem presença. A tendência ontológico-existencial do Dasein é a possibilidade da impossibilidade da existência.
      Ao dar-se conta dessa resposta à questão do Ser, o Dasein toma consciência pela ação do Transcendente, de sua própria incompletude e contingencialidade. O reconhecimento da ontologia do nada na essência da existência do Dasein, é o motivo pelo qual ele deve reorientar o sentido de sua trajetória existencial para o Ser absoluto que sustenta seu ser-no-mundo, embora o homem natural fique paralisado nesse estágio.
      Por isso, é uma ilusão do imanentismo progressista e humanista acreditar que o Dasein tem sua trans-cendência de si mesmo. Não existe soteriologia imanente que redima o homem da impropriedade e o contate com o Ser. A tendência natural do Dasein é o não-ser, por isso, sua busca pelo Ser deve ser movida pela ação transcendente do Ser absoluto.
      Daí a consciência do ser-para-a-morte produzir a angústia que possibilita esperança escatológica. Escatologia que é concretizada na Heilsgeschichte que encontra-se no âmago, não em um mero findar da História. O Transcendente se apresenta na realidade imanente, a atemporalidade adentra o tempo e a vida imortal morre a morte eternal. O encontro paradoxal mais fantástico ocorrido e, por isso, existencialmente mais profundo do que tudo. A impropriedade é tragada pela autenticidade, a recriação do Ser decaído e a manifestação da eternidade inteira ocorre em cada segundo.
       Há uma representação paradoxal da rejeição da humanidade no Logos, mas a aceitação de uma nova humanidade por meio do mesmo Logos representante, numa tríplice configuração, desconfiguração e reconfiguração existencial. A fenomenologização da repulsa da corrupção humana é manifesta no castigo expiador, ao mesmo tempo que a aceitação da oferta do Logos é justificadora à uma nova humanidade. Este é o paradoxo existencial que efetua uma vida autêntica naqueles nos quais o Parecleto opera. Assim, a humanidade é reconciliada "através de", "no", e "pelo" Logos com o Absoluto que lhes era "Inimigo" e os leva a paradoxal vivência escatológica do "já, mas ainda não".

O FENÔMENO DA ANGÚSTIA

     Já fiz algumas pontuações existenciais iniciais sobre o mesmo ( aqui ). Observei que há uma distinção importante entre significado e sentido. Mostrei como na angústia há um rompimento com o significado (trama hermenêutico-semântica), sem que haja uma perda de sentido (telos cristológico). Vale fazer uma analítica prolegômena da questão da angústia no interior da ontologia do nada e da escatologia do ser-para-a-morte.
       A reorientação da trajetória existencial a um sentido só é possível em meio à crise de angústia. A possibilidade do rompimento semântico com uma sintaxe ídolo-referente tem de necessariamente passar pela queda do mundo. É necessário ouvir o silêncio sem palavras da angústia, que nos chama a um redirecionamento existencial. É necessário que o sofrimento existencial provoque uma des-ontologização hermenêutica da trama aprisionante da impropriedade, reposicionando-nos perante o não-ser, isto é, o nada.
      É algo como um grito apavorante e desesperador: “Agora tudo está acabado, nada mais deve restar. Derrube o mundo ao chão, anuncie seu fim catastrófico, se depare com a ausência do ser na ontologia do nada. O cordão umbilical psicológico da inautenticidade da existência em sua decadência do Ser, precisa ser cortado de uma vez por todas.” Mas isso são só indicativos, não há linguagem nesse estágio, ele é semanticamente vazio e silencioso, hermeneuticamente inexprimível. O parto é angustiante, ele é o estreito e obscuro caminho recolocando o sujeito perante o vazio do nada que possibilita o paradoxal desvelamento da Plenitude das possibilidades.
       É na ausência do ser que o horizonte de múltiplas possibilidades de direcionamento, se abre no ato fenomenológico de desvelamento da realidade em si. A morte é o destino, que a reorientação precisa transcender pelo sentido do além-ser. O Dasein se realoca a partir do nada ao orientar-se para o Tudo, pois a porta do vazio abre a perspectiva da plenitude. Essa é a tra-dução, ou trans-dução, ou ainda trans-cendência da linguagem do silêncio. É a isso que sua voz vazia vocaciona. Assim, aquilo que foi configurado, agora desconfigurado, é então progressivamente reconfigurado à sua autenticidade original. Após decair da autenticidade e mergulhar-se na impropriedade, da qual é imanentemente inábil para sair, o Dasein se ergue pela ação transcendente do Outro, cuja essência e existência coincidem, para percorrer a trajetória existencial rumo ao Sentido autentico que é o Logos.

CONCLUSÃO

       Uma questão ontológica-existencial precisa ser posta ao Dasein na crise de angústia. Aquilo que estava velado sob a casca da onticidade manifesta-se fenomenologicamente como não-ser, absolutamente nada. Ontologicamente, na essência do Dasein, há um espanto com a própria nulidade e com a contingencialidade do ser. Por isso, a angústia é a disposição afetiva que nos coloca perante o nada, o vazio, o não-ser. Nenhuma trama semântica é capaz de "mun-dar", não se trata de uma possibilidade de ser, mas sim do que é o ser, isto é, nada. Daí reconhecer que o Dasein, não é só ser-com-outros ou ser-no-mundo, mas mais propriamente ser-para-a-morte, ser cuja essência é não-ser. Na angústia não há ontologia semântica, nem hermenêutica da co-presença, mas a in-existência que possibilita a transcendência do nada no recorrer do Absoluto. Lembrando, este delineamento ontológico-existencial não é uma análise final, mas um ensaio analítico para futuras reflexões e leituras.


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