A PROPOSTA DE UMA FILOSOFIA COMPARATIVA EM PATRICE MANIGLIER
No texto Manifesto para um comparatismo superior em filosofia, Patrice Maniglier se propõe a refletir sobre o que significa hoje filosofar. Ele afirma que deseja “entregar-se à hermenêutica de um desejo, que não é outra coisa senão o desejo de filosofar”. Esse ponto de partida é significativo: para Maniglier, a filosofia não nasce primeiro de conceitos ou sistemas, mas de um desejo originário, de uma força vital que impele o pensamento. Seu manifesto é, portanto, uma tentativa de dar forma a esse desejo e de libertá-lo de bloqueios e deformações históricas.
Ele observa que, na França contemporânea, emergiu uma reivindicação de “reapropriar-se da integralidade da ambição filosófica”. Em outras palavras, não basta apenas comentar, interpretar ou analisar tradições filosóficas: é preciso voltar a assumir a coragem de propor “uma filosofia, sua filosofia”. Esse movimento é visto por Maniglier como um gesto afirmativo e criativo, que recusa a ideia de que a filosofia esteja condenada a repetir o passado ou a limitar-se à crítica.
Nesse sentido, Maniglier insere seu manifesto dentro de uma “luta geracional”. Trata-se de um esforço coletivo de filósofos que querem libertar o pensamento de uma “má consciência” herdada do historicismo (a ideia de que a filosofia deve apenas reconstruir contextos e genealogias) e do desconstrucionismo (a postura de suspeita que tende a dissolver qualquer pretensão afirmativa). Esses paradigmas, embora importantes, teriam imposto uma forma de timidez ou paralisia ao filosofar, como se toda ambição de propor uma nova filosofia fosse ingênua ou ilegítima.
É por isso que Maniglier retoma a herança de pensadores como Deleuze e Badiou, que reivindicaram para a filosofia uma “inocência” ou uma “empreitada de desinibição”. Essa inocência não significa falta de rigor, mas sim a disposição de pensar sem medo de criar. O manifesto de Maniglier busca, assim, “corrigir” o desejo filosófico, não para restringi-lo, mas para reconduzi-lo ao seu “núcleo autêntico”. Esse núcleo é justamente a potência de criação que constitui a filosofia em sua origem. O gesto manifesto consiste, então, em nomear esse desejo, reconhecer seus entraves e propor novas condições para sua realização.
Essa proposta se ilumina quando lemos outra obra do autor, A vida enigmática dos signos. Nela, Maniglier descreve a linguagem como um “estranho jogo” em que “as regras mudam ao sabor dos lances”, de modo que os jogadores “jamais podem saber exatamente como isso acontece”. Essa metáfora da língua exemplifica o tipo de filosofia que ele defende: uma filosofia que não se limita a aplicar regras já dadas, mas que participa ativamente da invenção das próprias regras. Esse ponto é central. Maniglier distingue entre dois tipos de criatividade: (i) “criatividade governada por regras” (rule-governed creativity): é aquela que opera dentro de parâmetros já estabelecidos, como um jogo de xadrez em que as peças têm movimentos fixos; (ii) “criatividade que muda as regras” (rule-changing creativity): é aquela que é capaz de transformar as condições do próprio jogo, inventando novas possibilidades. Para ele, a filosofia autêntica deve pertencer a esse segundo tipo: não apenas criar dentro de limites preestabelecidos, mas redefinir o campo do pensável. É isso que torna seu manifesto um gesto verdadeiramente filosófico e não apenas acadêmico ou exegético.
Dessa forma, o projeto de Maniglier pode ser descrito como uma tentativa de reconstruir a filosofia a partir de seu poder criador. Ele retoma o que chama de “problema motor da história do estruturalismo”, isto é, a questão de como os sistemas de significação se formam e se transformam, mas o faz em novos termos, afirmando que a filosofia deve assumir seu papel poético (no sentido grego de poiesis: criação ou produção). É isso que confere ao seu texto o caráter de manifesto: (i) ele apresenta uma declaração de intenções (a ambição de propor uma nova filosofia); ele formula uma crítica às concepções anteriores (historicismo, desconstrução e a “má consciência” filosófica); (iii) ele propõe uma nova forma de filosofar, marcada pela criatividade que transforma as regras do jogo.
O pensamento de Patrice Maniglier propõe uma abordagem inovadora da filosofia, que se afasta da tradição de conceber a disciplina como um sistema fechado, uma ciência do ente ou uma busca por coerência lógica absoluta. Para desenvolver as ideias que o autor apresenta em seu Manifesto, este texto discute os seguintes tópicos: (i) Críticas ao Princípio de Não-contradição; (ii) Críticas à Filosofia como sistema; (iii) Críticas à Filosofia como Ciência do Ente em Geral; (iv) A Filosofia como uma Disciplina Comparativa.
I. CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DE NÃO-CONTRADIÇÃO
Patrice Maniglier apresenta uma crítica severa à aplicação literal do princípio de não contradição na filosofia. Para ele, a exigência de racionalidade que levaria à coerência lógica e, portanto, à obediência estrita a esse princípio, não pode ser tomada “literalmente a sério” em filosofia. O motivo é que a filosofia não se faz em linguagens formalizadas, mas na linguagem natural, que é inevitavelmente ambígua. Como também mostraram W. Quine, com o problema da subdeterminação, e Kripke-Wittgenstein, com o problema de seguir regras, nenhuma linguagem está livre de indeterminação. Ora, para que o princípio de não contradição fosse aplicável de modo estrito, seria necessário garantir uma perfeita univocidade entre os termos que aparecem nas premissas e na conclusão de um argumento. Caso contrário, qualquer raciocínio poderia ser acusado de incorrer na falácia do quarto termo ou estaria sempre vulnerável a ser refutado pelo método de desambiguação.
Acontece que, na linguagem ordinária, não há como assegurar tal univocidade absoluta. A identificação de uma contradição inequívoca só é possível em linguagens formalizadas, nas quais a identidade dos símbolos é garantida. Porém, essas linguagens carecem do conteúdo necessário para sustentar pretensões de verdade filosófica: nelas, é possível demonstrar validade formal, mas não se extrai daí a substância conceitual que interessa ao pensamento. Em certo sentido, a formalização extrema sacrifica justamente aquilo que a filosofia busca, que é uma reflexão com alcance ontológico, ético ou existencial. E mesmo linguagens formalizadas talvez não se livrem completamente da ambiguidade, pois sua interpretação ainda depende de convenções, usos e contextos, o que significa que a equivocidade pode ser estrutural a todo sistema de signos.
Essa crítica encontra apoio em A Vida enigmática dos Signos. Ali, Maniglier mostra que a própria natureza do signo linguístico desafia uma lógica binária rígida. Inspirando-se em Saussure, ele sustenta que a linguagem é imaterial e tem uma natureza dupla: o signo é sempre duplamente determinado e, por isso, sem cessar equívoco. Essa duplicidade significa que nunca é possível fixar de modo estrito o significado de uma performance linguística. A língua, longe de ser simples, é excepcional, irredutível e incomparável a objetos unívocos. Ela funciona como um “estranho jogo” em que “as regras mudam ao sabor dos lances”. Se as regras, e, portanto, os significados, estão em constante fluxo, a aplicação literal do princípio de não contradição torna-se impraticável. Identificar uma contradição passa a depender de intuições semânticas, usos compartilhados e da boa vontade dos intérpretes.
Para tornar essa ideia mais vívida, Maniglier recorre ao episódio de Alice jogando críquete com um flamingo rosa usado como taco (Alice no país das maravilhas). Nesse contexto, a identidade do objeto se desfaz: o flamingo continua sendo um flamingo, mas é também um taco, e sua função oscila conforme o jogo. A experiência mostra como a linguagem e o mundo que ela descreve podem subverter identidades fixas, de modo que aplicar rigidamente o princípio de não contradição se torna impossível sem antes trabalhar o sentido dos termos em questão. O que se vê, portanto, é que os filósofos que tentam aplicar o princípio de maneira literal acabam dependendo de critérios extralógicos, intuições semânticas, práticas de uso, expectativas compartilhadas, e assim se contradizem ao reivindicar um rigor absoluto ao mesmo tempo em que apelam ao senso comum que antes denunciavam.
Com isso, a crítica de Maniglier não implica recusar a lógica, mas reconhecer que ela não pode ser imposta literalmente sobre a linguagem natural em que a filosofia vive. Como essa linguagem é constitutivamente equívoca, o verdadeiro rigor não consiste em buscar uma univocidade inalcançável, mas em assumir a ambiguidade e lidar com ela de forma criativa. A filosofia, para Maniglier, deve trabalhar essa variabilidade como parte de sua própria matéria, em vez de tentar suprimi-la em nome de uma coerência que só se sustenta na abstração da formalização.
Por outro lado, Maniglier não se limita a criticar o princípio de não contradição: ele também lhe concede uma reinterpretação positiva. Em vez de tratá-lo como um critério lógico-formal rígido, ele o entende como um princípio hermenêutico, isto é, como um recurso interpretativo que orienta o trabalho do pensamento. Nesse sentido, o princípio não funciona como uma lei absoluta que prescreve o que pode ou não ser dito, mas como uma exigência que “estimula e enriquece o trabalho conceitual”, ajudando a esclarecer o que realmente queremos dizer quando falamos. O princípio atua, assim, como um ideal regulador dentro da linguagem natural. Ele exige que o falante reformule suas proposições sempre que uma paráfrase de boa fé conduzir a uma formulação contraditória do tipo “A e não-A”.
Não se trata de eliminar de antemão toda ambiguidade, mas de trabalhar o sentido até que o discurso possa sustentar uma consistência mínima, capaz de ser compreendida. Nesse movimento, o princípio de não contradição não limita a criatividade do pensamento, mas orienta o esforço de dar forma inteligível às ideias. Em outras palavras, sua função não é prescritiva, mas construtiva: não dita o que pode ser dito em termos absolutos, mas guia o processo pelo qual algo se torna dizível e compreensível, ainda que de modo estranho, deslocado ou inovador. Ele obriga o filósofo a enfrentar a ambiguidade constitutiva da linguagem, a negociar com ela e a explorar suas variações em busca de inteligibilidade. Assim, o princípio garante que o discurso “consista” e não “desmorone”, mesmo quando navega em terrenos instáveis.
II. CRÍTICAS À FILOSOFIA COMO SISTEMA
Maniglier critica as duas razões tradicionais para conceber a filosofia como um sistema:
(1) Como realização da exigência racional: A ideia de que a filosofia deve fornecer uma justificativa válida para tudo, não deixando nada sem razão, buscando a coerência intrínseca do pensamento. Maniglier argumenta que essa exigência é "insustentável", pois a razão é frequentemente um aparelho para pacificar a consciência, não tendo "poder criativo". A busca por coerência absoluta leva ao problema do princípio de não contradição, que, como considerado, é inoperante na linguagem natural.
(2) Como pensamento do todo (vocação totalizante): A concepção de que a filosofia é a única disciplina de pensamento cujas verdades são ilimitadas, abarcando o universal ou o total. Ele critica três maneiras de conceber isso: (i) como ontologia formal (ciência de qualquer objeto), (ii) como enciclopédia (unidade de todos os saberes), ou (iii) como um método universal. Maniglier duvida dessa legitimidade, afirmando que o pensamento não se impulsiona pelo geral, mas sempre em relação ao singular. Ele também critica que essa vocação totalizante muitas vezes pressupõe uma relação com o nada (como em Heidegger), o que ele vê como problemático e que reconduz a filosofia a uma via mitológica.
No entanto, Maniglier reabilita uma nova noção de sistema porque considera que o desejo filosófico é "fundado" e "autêntico". Essa reabilitação se baseia em:
(1) Exigência de soberania: O sistema, nessa chave, é um ato de invenção: não responde a problemas dados, mas inaugura mundos possíveis. Ele é comparável à poesia e à literatura, porque produz formas que têm valor em si mesmas, e não porque visam à utilidade ou a uma totalidade externa. É também uma decisão existencial: construir um sistema é afirmar-se, escolher o exílio, recomeçar tudo a partir de um ponto singular.
(2) Exigência de solidão/separação: O sistema, em vez de abarcar a totalidade, faz da singularidade um mundo: transforma uma exceção, uma raridade, algo quase insuportável, em um espaço habitável. É uma forma de converter a solidão radical em possibilidade de pensamento. O sistema, portanto, não contém o mundo todo, mas mostra que o mundo de partida não era o único, que sempre é possível criar outros.
(3) Captura de novidades radicais e descontinuidade: O sistema também é a arte de acolher descontinuidades e novidades radicais. Ele não é um instrumento de continuidade, mas de ruptura. É o modo de sentir o que é realmente novo, aquilo que quebra a cadência do já dado.
A partir disso, Maniglier afirma que a filosofia, assim como a arte, possui uma gratuidade: ela se inventa, propõe e apresenta mundos, em vez de apenas resolver problemas preexistentes. A filosofia se torna um fim em si, capaz de gerar novas evidências, intuições e reinvenção cultural. Em A Vida enigmática dos Signos, Maniglier observa que, assim como na poesia, o signo pode manifestar-se como realidade virtual, simbolizando um sujeito ou tema que emerge integral e intratável. A filosofia, ao criar sentido e evidência, compartilha com a arte a tarefa de reinventar a cultura, funcionando como uma “engenheira do senso comum”.
Nesse contexto, o senso comum pode ser entendido como uma forma de inteligibilidade que emerge da interação recíproca de diversos sistemas simbólicos. Em termos estruturalistas, o sentido não é algo dado, mas um efeito do funcionamento desses sistemas. Entre eles estão a língua, práticas culinárias, modos de vestir, sistemas políticos e ordens religiosas, cada um deles estruturado internamente em subsistemas (como fonologia e morfologia, no caso da língua).
Esses sistemas não operam isoladamente; pelo contrário, eles se desconstroem e se reconstroem mutuamente, fornecendo material uns aos outros. Por exemplo, a mitologia pode desestabilizar e reorganizar sistemas linguísticos ou políticos, ou ainda ocultar contradições dentro de um sistema de parentesco. O senso comum, assim, é a experiência de navegar entre esses sistemas, perceber sua circulação e suas interações. Mais precisamente, o senso comum é, de certo modo, o nome de uma ausência: a ausência de percepção exata sobre o caráter sistemático dos signos que moldam nossa experiência cotidiana. Ele surge da sobredeterminação: a maioria dos objetos e práticas do dia a dia existem pela superposição de múltiplas determinações simbólicas. Uma xícara de café, por exemplo, pertence simultaneamente a diversos sistemas, percepção visual, hábitos de consumo, gestos culturais, preferências gustativas. e só adquire sentido dentro dessa rede complexa de significações.
Daí decorre a posição sistemática relativista que Maniglier defende: o sistema não é absoluto, mas sempre relativo a uma singularidade e sempre em reconstrução. Ele serve para aclimatar o estranho, o radical, o inédito, dentro de nossa experiência, sem neutralizá-lo. A posição sistemática relativista de Maniglier pode ser compreendida a partir de quatro eixos fundamentais:
(i) Crítica ao absolutismo: a tentação absolutista é atraente porque promete uma saída radical e definitiva do tecido da existência, uma “liberdade suprema” obtida pelo corte total com todas as dependências. Maniglier, no entanto, considera essa promessa ilusória, pois supõe a possibilidade de uma relação com o todo sem que este seja internamente modificado. Não há um ponto externo absoluto a partir do qual o pensamento poderia se libertar de tudo de uma vez; todo gesto filosófico acontece dentro do campo das variações.
(ii) Defesa da variação: em lugar da ruptura total, Maniglier propõe pensar a liberdade a partir do “desligamento local” (déboîtement). A filosofia deve explorar fissuras e deslocamentos parciais, em que o já dado se reconfigura e se abre a novos sentidos. Não se trata de destruir a ordem do mundo por completo, mas de multiplicar suas possibilidades internas. A variação torna-se o verdadeiro motor do pensamento.
(iii) Pluralismo perspectivista: a liberdade é possível porque o mundo pode ser visto de muitas maneiras diferentes dentro de si mesmo. O pensamento filosófico, ao invés de fixar um único ponto de vista universal, deve multiplicar perspectivas, mostrando como o real se deixa transformar por dentro. O sistema, assim, não fecha o mundo, mas abre espaço para uma circulação entre modos de ver e habitar.
(iv) Defesa do materialismo: essa visão se ancora em um materialismo de inspiração marxista. Para Maniglier, a verdade de um mundo só ressoa quando esse mundo já está em processo de transformação, já se encontra em vias de ser invertido. O sistema, portanto, não é uma estrutura imóvel, mas o acompanhamento criativo dos movimentos de mudança, capaz de acolher novidades radicais sem pretender estabilizá-las numa totalidade definitiva.
(v) Desapego progressivo: em sintonia com isso, a liberdade não é um estado final de desapego absoluto, mas um processo sempre inacabado. O mais honrável, segundo Maniglier, é avançar passo a passo, deixando a vida “acontecer por ela mesma” e permitindo que se recombine em novas formas. O valor está no processo, e não em um resultado supostamente puro ou completo.
Quanto ao desapego progressivo, ele merece um tratamento mais detalhado. Maniglier afirma que “se desapegar é o que podemos fazer de melhor, de mais honrável, de mais respeitável”, justificando que “nada é permanentemente respeitável”. Para ele, o desapego é uma virtude em si, permitindo criar “um grão de ar, uma brisa, o mais leve sopro do possível entre nós e nossa vida tal como ela é”, constituindo o “motivo mais profundo e mais teimoso da filosofia”. Diferentemente da busca absolutista por um desapego súbito e total, Maniglier propõe um processo gradual, parcial e necessariamente incompleto, que ele denomina “filosofia da variação, do desligamento (déboîtement) local”. Esse processo envolve a exposição constante da contingência de nossas formas de vida e a criação de uma prática ativa de desobediência, exigindo que o sujeito realize uma mudança efetiva, um deslocamento qualitativo real que possibilite novas formas de experiência e compreensão.
Essa concepção de desapego se aproxima da sublimação sem recalque em Lacan, que pode ser entendida como a transformação do desejo sem recalcamento. Diferentemente de outras formações do inconsciente, como sintomas ou atos falhos, a sublimação sem recalque não empurra o desejo para o inconsciente, mas redireciona a pulsão para um objeto culturalmente valorizado (arte, ciência, filosofia) sem negar a energia original do desejo. O objeto criado nesse processo não é um substituto imaginário, mas uma produção simbólica que circunda o real, a “Coisa”, e permite uma satisfação pulsional equivalente à satisfação sexual, sem gerar conflito, culpa ou angústia. Em outras palavras, a sublimação sem recalque é uma forma de transformação criativa do desejo, que mantém sua intensidade, mas a torna inteligível e socialmente significativa.
Analogamente, o desapego manigliano não busca um estado final de liberdade ou totalidade, mas ocorre na prática contínua de deslocar o senso comum, tornando inteligíveis as singularidades radicais, as “paixões”, que desafiam nossa compreensão. Assim como na sublimação, em que o desejo se realiza no entre do que está “para além” e “para aquém” da demanda, o desapego filosófico se dá entre o familiar e o inesperado, criando espaço para que aquilo que parecia incompreensível ou disruptivo seja integrado à experiência do sujeito.
Maniglier associa o desapego às singularidades radicais que emergem de nossas práticas científicas, artísticas ou culturais, e que ele chama de “paixões”: necessidades cegas, inegociáveis, que desestabilizam o eu e contradizem o senso comum. O papel da filosofia é reconstruir o senso comum em relação a essas singularidades, criando um espaço em que o impensável possa ser compreendido e acolhido. Essa função se aproxima do que Lacan descreve como a função do Belo, exemplificada na tragédia de Antígona: o Belo permite ao sujeito transpor o mal-estar do desejo, situando-o no entre, no limite entre vida e morte, e confrontando-o com leis não escritas que conferem responsabilidade frente ao próprio desejo. De forma análoga, o desapego manigliano cria um espaço no qual o sujeito filosófico aclimata o radical, o impensável, tornando inteligível aquilo que inicialmente parecia incompreensível ou disruptivo.
III. CRÍTICAS À FILOSOFIA COMO CIÊNCIA DO ENTE EM GERAL
Maniglier tece críticas contundentes à concepção da filosofia como ciência do ente em geral, que ele descreve como um dos “engodos” que distorcem o desejo de filosofar. Suas principais críticas são:
(i) Pressuposto errôneo do objeto do pensamento: Maniglier questiona a ideia de que pensar consiste necessariamente em pensar um objeto universal ou total. A concepção de filosofia voltada ao “todo” ignora a dinâmica efetiva do pensamento, que, segundo ele, se impulsiona mais plausivelmente como um “ímpeto que vem por detrás”, motivado pelo singular, e não pelo geral. O impulso filosófico surge do encontro com casos excepcionais, não de abstrações totais.
(ii) Falta de emoção e paixão nas generalidades: Para Maniglier, a filosofia não se move pelo geral. “Nunca podemos surpreender-nos com nada de geral.” O que nos comove é a existência concreta de “tal mulher, tal homem, tal ente”. Ontologias gerais, por mais sofisticadas, parecem “sábias demais, pouco apaixonadas demais” para engajar realmente a questão do ser, porque abstraem da experiência singular que desperta curiosidade e desejo de pensar.
(iii) Caráter diferencial da questão do ser: A tradição existencial, ao reabilitar a questão do ser, sempre o fez de modo diferencial, como no caso do ser do Dasein em Heidegger. Maniglier interpreta isso de forma “antropológica” ou comparativa: é a singularidade do ser, observada em relação a outros seres comparáveis, que faz emergir o pensamento. Não é o “fato nu” do ser em geral que nos impulsiona, mas as variações, exceções e deslocamentos que ele introduz nas práticas ordinárias.
(iv) Dependência da noção de nada: A tentativa de se relacionar com o todo frequentemente recorre à ideia de nada, como em Heidegger, onde “tudo torna-se um problema” do ponto de vista do nada. Maniglier considera essa noção problemática (citando Bergson) e a vê como uma recondução da filosofia moderna a uma via mitológica, que distorce a relação com os saberes e encobre sua pouca relação com a verdade concreta.
(v) Ilusão retrospectiva do “ser posto”: A ideia de que o ser está “sempre já posto” ou “sempre já entendido”, presente no círculo hermenêutico de Heidegger, é para Maniglier enganosa. A experiência do ser só se apresenta no horizonte de exceções que questionam sua regulação com outras práticas. Ou seja, não há experiência do ente em geral; nossas práticas funcionam sem essa pressuposição.
(vi) Origem da questão do ser: Para Maniglier, a questão do ser não surge de uma negação radical ou de uma relação com o nada, mas da “irrupção imprevista da equivocidade da palavra ‘ser’ em nossas práticas ordinárias”. A ontologia é um efeito reflexivo de singularidades ônticas que rompem a continuidade de nossas evidências e que exigem uma reavaliação do comum e das relações entre práticas.
Assim, Maniglier defende que só temos experiência com singularidades porque o pensamento se move pelo particular e pelo excepcional, não pelo geral. A filosofia se impulsiona “em relação ao singular”. As questões ontológicas emergem de variações ônticas catastróficas, de encontros com entes bem determinados que rompem o regime normal de relações. Os impensáveis que condicionam o pensamento filosófico são singulares, limite do nome próprio, acontecimentais; não vêm de fora, mas emergem de nossas práticas e experiências. A filosofia, então, é a arte de “aclimatar singularidades radicais em nossa experiência”, transformando o extraordinário em objeto de reflexão sem recorrer a abstrações universais ou totalizantes.
Segundo Maniglier, a questão do ser não depende da negação, mas da multiplicidade, entendida como algo que “substitui a equivocidade”. A questão do ser surge quando percebemos que a palavra “ser” pode assumir sentidos radicalmente diferentes em diferentes contextos. O que esclarece a possibilidade da questão do ser não é, portanto, a negação, mas o equívoco, que Maniglier descreve como “uma modalidade da multiplicidade”. Essa multiplicidade não é uma mera diversidade sem relação com o idêntico. Pelo contrário, ela se manifesta como uma variação contínua em relação ao idêntico. Como ele explica, “há multiplicidade quando um é também o outro, ou ainda quando a identidade é variável”.
Em outras palavras, um termo ou conceito pode assumir sentidos distintos dependendo do contexto ou da relação em que se insere, sem se restringir a uma única determinação rígida. Dessa forma, a equivocidade é a expressão concreta da multiplicidade: a identidade de um termo ou conceito não é fixa, mas variável e coexistente com outros sentidos. É justamente essa flexibilidade que permite que o pensamento filosófico explore a riqueza e a complexidade do ser, sem depender de definições absolutas ou rígidas.
Dessa forma, o mundo é refeito em torno dessas singularidades. Trata-se de “manipular nossas evidências” e “reconciliar verdade e evidência”, recriando o espírito para que as invenções práticas singulares que nos afligem pareçam “consequências naturais de nossa própria natureza”. É um trabalho de dar sentido a um mundo constantemente rasgado por irrupções de contingências gigantescas, tornando possível viver e pensar mesmo diante do inesperado e do impensável.
IV. A FILOSOFIA COMO UMA DISCIPLINA COMPARATIVA
Maniglier conclui suas reflexões afirmando que a filosofia é, essencialmente, uma disciplina comparativa. Ela procura repensar o ato de pensar a partir do fato de que podemos e queremos agir sem necessariamente compreender totalmente o que fazemos. Essa natureza comparativa decorre de três condições centrais:
(1) Desprendimentos práticos (“positividades”): Vivemos sujeitos a necessidades intrínsecas e indiferentes que geram efeitos singulares e interrompem os mecanismos pelos quais nos acostumamos ao mundo, considerando-o “normal” ou “evidente”. A filosofia não prescreve o ser, mas observa os seres que se impõem por virtude de práticas concretas.
(2) Multiplicidade de mundos práticos heterogêneos: Nossa existência se dá em mundos práticos diferentes e heterogêneos, o que gera uma incomunicabilidade essencial entre as práticas. A questão do “ser” só surge quando se pergunta sobre a traduzibilidade de um modo de existência em outro. A ontologia emerge quando um ser particular tematiza a própria homogeneidade dos seres, tornando o significado de “ser” problemático.
(3) Senso comum como equivocidade: No dia a dia, vivemos sob a ilusão de certa comunicabilidade, habitando “literalmente no equívoco”, acreditando haver uma medida comum entre incomensurabilidades. A filosofia utiliza esses equívocos para compreender singularidades, medi-las e criar condições para que sejam acolhidas como sensatas. Funciona como uma diplomacia entre modos de existência, na qual o “ente vagabundo” que questiona o ser viaja entre múltiplas práticas e universos de evidência.
Para lidar com essa diversidade e complexidade, Maniglier propõe o método variacionista, que valoriza transformações graduais e localizadas, em vez de rupturas absolutas. Esse método reconhece a inabilidade em manter uma identidade fixa e a flutuação das realizações fônicas, transformando a multiplicidade de mudanças em um evento único por meio da compreensão de suas “equações algébricas” e “limites de covariância”. Um exemplo é a teoria da quarta proporcional, que explica como um termo pode variar sem que o sujeito perceba. O sistema filosófico, assim, não é estático, mas sempre se refaz, reconstruindo-se a partir de seus próprios resultados.
O método variacionista permite que a filosofia intensifique lacunas e divergências, em vez de reduzir a linguagem a regras fixas, criando um novo aparelho categorial capaz de acolher singularidades radicais. Trata-se de uma filosofia local, situada, provisória, experimental e heterônoma. Seus princípios centrais são:
(1) Filosofia da variação e do desligamento local: Em vez de cortar todos os vínculos de uma só vez, a filosofia busca arriscar, fazer variar e deslocar elementos de nossas práticas cotidianas.
(2) Exposição da contingência: Trabalha constantemente a contingência das formas de vida e promove uma prática ativa de desobediência.
(3) Deslocamento efetivo: O desapego só é significativo se envolve uma mudança real e qualitativa no mundo, e não meramente uma abstração entre tudo e nada.
(4) Pluralismo perspectivista: A liberdade do sujeito depende de um mundo que é internamente múltiplo, capaz de ser visto de diferentes pontos de vista e de se modificar continuamente.
(5) Aclimatação de singularidades: A filosofia se define pelo esforço de aclimatar singularidades radicais, reinventando o senso comum para tornar inteligíveis experiências que antes pareciam impensáveis.
(6) Retificação das incompatibilidades: Maniglier propõe uma prática da heterogeneidade das práticas, intensificando lacunas e divergências e recriando o senso comum para acolher singularidades.
(7) Transformação e redeterminação: O senso comum é composto por identidades transitórias que surgem da sobreposição de muitos sistemas. A filosofia atua quando essas “transformas” falham, reorganizando-as e produzindo um senso comum renovado em sua própria estrutura.
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