FILOSOFIA DO CONSENTIMENTO SEXUAL


O texto a seguir foi construído a partir das aulas sobre filosofia do sexo apresentadas por Kane B em sem canal no Youtube (aqui). Este texto se divide nas seguintes partes: (i) condições que impedem o consentimento: coerção, engano e intoxicação; (ii) ontologia do consentimento e (iii) a visão liberal sobre o sexo. 

 

I. CONDIÇÕES QUE IMPEDEM O CONSENTIMENTO 

 

Um dos elementos mais importantes na discussão sobre sexualidade é a questão do consentimento. Geralmente se argumenta que o consentimento é uma condição para que um ato sexual seja moralmente permissível. Contudo, há um debate sobre quais condições impedem o consentimento. Entre os principais candidatos estão: (i) a coerção; (ii) o engano; (iii) a intoxicação. 

 

I. I COERÇÃO 

 

       Podemos dizer que uma pessoa consente com P quando ela compreende o que é P, concorda em fazer P e não está sob coerção. De acordo com a abordagem nozickiana, X pratica coerção contra Y no sexo quando: (i) X busca fazer Y assentir com o sexo; (ii) se Y não assentir, X ameaça trazer como consequência algo que é menos desejável a Y do que Y assentir como o sexo; (iii) a ameaça de X é crível. Uma dificuldade com essa definição surge quando pensamos no caso de um parceiro que pede ao outro para fazer sexo com ele, senão ele terminará o relacionamento. Como fazer sexo é algo esperado em um relacionamento, alguns supõem que esse tipo de ameaça não é uma coerção, pois parece ser apenas uma demonstração de insatisfação com a relação. Outros, no entanto, consideram que um caso assim continua sendo uma coerção. 

        A abordagem de Nozick corre o risco de tornar a coerção relativa ao que é normalmente esperado. Sexo regular é algo normalmente esperado em um relacionamento. O problema é que o que é “normalmente esperado” não necessariamente é o que é moralmente adequado de um ponto de vista ética objetivo. Por exemplo, em algumas culturas era normalmente esperado que o escravo se submetesse ao sexo com o seu dono. O fato de que isso era normalmentr aceito não tira o caráter coercitivo desses atos.  

        Uma outra proposta de compreender a coerção é a abordagem de Alan Wertheimer. De acordo com essa abordagem, X prática coerção contra Y sobre relações sexuais quando (i) X propõe fazer a Y algo pior relativo àquilo que Y tem direito se ele não concordar com o sexo; (ii) é razoável a Y não sucumbir à proposta de X. Essa abordagem enfrenta, contudo, o problema de como delimitar quais são os direitos de uma pessoa e quem é capaz de protegê-los. 

       A abordagem de Wertheimer também apresenta dificuldades se for generalizada para casos de coerção fora do contexto sexual. Por exemplo, prender um criminoso deve ser considerada uma coerção que viola seus direitos? Mesmo em se tratando de coerção sexual, a teoria pode não considerar coerção coisas que geralmente entederíamos como coerção. De exemplo, se X oferece um emprego a Y sob a condição de ter sexo, como Y não tem o direito de ser empregado por X, isso não seria coerção?  

       Para tentar lidar com os limites de abordagens sobre coerção, alguns defendem que o consentimento que conta no sexo não é o consentimento simples, mas sim o consentimento entusiástico. Isto é, para que o sexo seja moralmente permissível, não basta que a pessoa concorde com o sexo, ela precisa ser entusiástica sobre ele, dando um consentimento claro, robusto e apaixonado. 

 

I.II. ENGANO 

 

       Visto que consentimento requer informação, outra condição que parece minar o consentimento é o engano. Isso levanta questões sobre se uma pessoa precisa informar seu parceiro sexual sobre ser uma pessoa trans, sobre ter HIV, sobre se ela ama de fato a pessoa, não mentir sobre contracepção, formação profissional etc. Para lidar com a questão do engano, alguns distinguem dois tipos de fraudes: (i) fraude de fato: ocorre quando X é enganado sobre aquilo em que consiste seu consentimento (exemplo: uma pessoa consente em que um ginecologista introduzida um instrumento médico em si, mas o médico introduz na verdade e abusivamente um dildo); (ii) fraude de induzimento: ocorre quando o consentimento de X é alcançado por meio de engano (exemplo: um homem finge estar apaixonado por uma mulher e ela aceita fazer sexo com ele). 

        Tradicionalmente se assume que é só a fraude de fato que elimina o consentimento. Contudo, a distinção entre esses dois tipos de fraude não é clara. Por exemplo, um pessoa trans mentir sobre ela não ser uma pessoa cis é uma fraude de fato ou induzimento? Também parece haver casos de fraude de induzimento que podem invalidar o consentimento. Tom Dougherty, por exemplo, defende que mesmo enganos ordinários, como mentir sobre a profissão ou sobre ter pets, pode invalidar o consentimento. Para ele, qualquer fato que faria uma pessoa não mais consentir com o sexo é relevante para a validade do consentimento. 

        Podemos apresentar os seguintes argumentos a favor da posição de Tom Dougherty: (i) argumento contra o moralismo sexual: usar um critério independente para separar o que conta como engano permissível e o que não conta é dizer que certas características sobre o sexo contam mais do que outras e essa distinção geralmente é baseada em moralismo sexual, é o indivíduo que deve ter liberdade para dizer quais fatos são relevantes; (ii) argumento do cachorro: suponha que uma pessoa não goste de uma dada raça de cachorro e não quer essa raça em sua casa; no entanto, ao visitar tal pessoa, um amigo pergunta se pode levar seu cachorro, mas mente ou oculta sua raça; ao reclamar de ter um cachorro dessa raça em sua casa, o amigo não pode simplesmente alegar que a pessoa consentiu em trazer o cachorro, já que lhe faltou uma informação importante; se o engano nesse caso viola o consentimento, enganos em casos similares, como o de uma pessoa que mente sobre suas posições políticas, também viola o consentimento para o sexo; (iii) argumento do conceito de consentimento: consentir que X faça P a você é abrir mão de seu direito de que X não faça P a você; uma pessoa tem o direito de não fazer sexo com alguém que, por exemplo, ela discorda politicamente; portanto, esse tipo de engano fere o consentimento. 

 

I.III. INTOXICAÇÃO  

 

Por intoxicação, tem-se em mente casos em que uma pessoa está em um estado alterado de consciência sob efeitos de substâncias psicoativas, como o álcool ou outras drogas. Surge, então, a questão sobre se fazer sexo com alguém bêbado fere o consentimento. De acordo com a visão restritivista, se X está intoxicado, então X é incapaz de consentir com o sexo. Segundo essa visão, a intoxicação interfere na habilidade da pessoa de usar a razão, levando-a a agir contra seus próprios interesses ou fazer coisas que não faria se estivesse sóbria. Além disso, o restritivista argumenta que socialmente reconhecemos que uma pessoa com intoxicação, ainda que voluntária, é incapaz de consentir sobre coisas como fazer uma cirurgia, vender uma casa ou fazer uma tatuagem. Se a intoxicação impede o consentimento nesses casos, também o impede no caso do sexo. 

Contudo, alguns argumentos podem ser apresentados contra a visão restritivista: 

(1) Argumento da responsabilidade: uma pessoa que colocou a si mesma voluntariamente em uma condição de intoxicação assume a responsabilidade pelos riscos de se colocar nesse estado; se a intoxicação invalidasse o consentimento, então ela também invalidaria a responsabilidade; mas consideramos pessoas bêbadas responsáveis, por exemplo, caso provoquem um acidente; podemos, assim, formular o seguinte argumento: (i) se X se colocou voluntariamente ema condição de intoxicação, então X é responsável por suas ações; (ii) se X é responsável por suas ações, então X pode consentir com o sexo; (iii) logo, a intoxicação voluntária não prejudica a capacidade de consentimento. 

(2) Argumento da não-analogia: talvez a intoxicação prejudique o consentimento apenas para as coisas que causam alterações permanentes, como tatuagem e cirurgias, esse não é o caso do sexo. 

(3) Argumento da intoxicação mútua: como a visão restritivista lidaria com casos em que duas pessoas intoxicadas fazem sexo? Nesse caso, nenhuma das duas estariam fazendo algo errado, já que ambas não estariam em condições de consentir ou de serem responsáveis. Mas não é estranho que a visão restritivista sobre intoxicação implique que no sexo em que todas as partes estão intoxicadas, ninguém está fazendo algo errado? 

(4) Argumento do respeito à autonomia: permitir que pessoas intoxicadas consintam em fazer sexo parece ser parte do respeito à sua autonomia, mesmo que suas escolhas sejam ruins; por exemplo, parece que devemos respeitar a escolha de alguém em beber para ficar menos inibido na hora do sexo. 

        

II. ONTOLOGIA DO CONSENTIMENTO 

 

De acordo com o subjetivismo, consentimento é uma questão de ter um determinado estado mental do tipo “eu concordo em fazer sexo com X”. Já segundo o performativismo, consentimento é algo comportamental, envolvendo performar certas ações como o ato de dizer “eu concordo em fazer sexo com você”. Se o consentimento for um estado mental, então faz sentido dizer que uma pessoa consente com sexo mesmo que não seja capaz de expressar ou dizer isso, como no caso de uma pessoa com paralisia completa. Por outro lado, para o performativismo, o consentimento só se torna algo efetivo quando ele é expresso por meio da fala ou de algum comportamento. 

Podemos considerar os seguintes argumentos a favor do performativismo: (i) a única maneira de acessar o consentimento de alguém é examinando seu comportamento; (ii) consentimento é algo moralmente relevante para transformar como uma pessoa responde a outra, e isso só faz sentido se o consentimento for algo comportamentalmente expresso; (iii) o consentimento só tem valor na medida em que é expresso, se uma pessoa consente com algo, mas depois muda de ideia, seu consentimento só é retirado quando ela expressamente remover o consentimento; (iv) o estado mental associado ao consentimento admite graus, enquanto o consentimento não admite graus (argumento de Heidi Malm); (v) o consentimento pode ser invalidado pelo engano – considere, por exemplo, o caso de uma pessoa que concorda em fazer sexo com seu marido; no entanto, o irmão gêmeo de seu marido, faz sexo com essa pessoa; no caso em que está com seu marido, seu estado mental é o mesmo do que quando está com o irmão gêmeo do marido, mas no primeiro caso há consentimento e no segundo não; consequentemente o consentimento não pode ser um estado mental (argumento de Alan Wertheimer); (vi) somente o performativismo é compatível com o “consentimento implícito”, que ocorre quando o consentimento não é acompanhado por um estado mental correspondente; esse é o caso do namorado que consente que seu parceiro o estimule sexualmente enquanto ele está dormindo. 

         Pode-se, apresentar, por outro lado, os seguintes argumentos a favor do subjetivismo: (i) mesmo que uma pessoa seja forçada a expressar verbalmente ou comportamentalmente consentimento, ela só terá consentido se de fato tiver consentido mentalmente; (ii) o performativismo precisa lidar com o problema de determinar que ação ou conjunto de ações contam como consentimento, enquanto o subjetivismo não enfrenta esse problema; (iii) o subjetivismo captura melhor o que há de danoso no sexo não-consentido; segundo Heidi Hurd, o subjetivismo captura o fato de que o consentimento está fundamentalmente conectado com a vontade, isto é, com a autonomia; (iv) atos de fala só são efetivos se preencherem critérios de estados mentais implícitos (argumento de Larry Alexander); (v) o performativismo leva a consequências inaceitáveis, como tornar os atos de consentimento algo baseado em critérios convencionais; por exemplo, no passado, o casamento arranjado era considerado um sinal de consentimento e se defendia, a partir da ideia de débito conjugal, que uma mulher, mesmo que não estivesse com vontade, deveria fazer sexo com seu esposo; negar que haja consentimento em um caso como esse, envolveria pensar o consentimento para além de um estado mental. 

 

III. A VISÃO LIBERAL SOBRE O SEXO 

 

         De acordo com a visão liberal, o consentimento é necessário e suficiente para que o sexo seja moralmente aceitável. Podemos, no entanto, considerar alguns desafios à visão liberal: (i) Desafio do feminismo radical (Catherine Mackinnon e Andrea Dwarkin): não há uma distinção clara entre sexo consentido e não-consentido, especialmente considerando as forças coercitivas da dominação masculina sobre as mulheres; todo homem que faz sexo com uma mulher, dada a dominação masculina, está abusando sexualmente dela; (ii) Desafio da teoria queer radical: pode haver casos em que o sexo não-consensual é aceitável, especialmente quando for um sexo transgressor de certos padrões cis-heteronomativos; (iii) Desafio da visão significativa (David Benatar): enquanto a visão liberal entende que o consentimento é condição necessária e suficiente para a permissibilidade moral de um ato sexual, para a visão significativa, para que o sexo seja moralmente aceitável, ele deve ser uma expressão do amor romântico e de sentimentos de afeição e reciprocidade. 

          Se a visão liberal estiver correta, parece se seguir dela que o incesto consentido é moralmente permissível. Para discutir a questão do incesto, podemos partir do princípio básico de que para qualquer ação X, nós devemos tratar X como moralmente permissível a menos que tenhamos boas razões para pensar que X seja moralmente errado. De modo similar, para qualquer ação X, X deve ser legal, a menos que tenhamos boas razões para proibir isso legalmente. Desse modo, o ônus da prova deve estar sobre aqueles que consideram o incesto errado ou algo que deve ser ilegal. Podemos considerar os seguintes argumentos contra o incesto: 

 (1) Argumento dos defeitos genéticos: o incesto é danoso na medida em que os filhos gerados por relações incestuosas têm maiores chances de nascerem com doenças genéticas. Esse argumento enfrenta, entretanto, os seguintes problemas: (i) sexo não necessariamente gera filhos, basta as pessoas usarem métodos contraceptivos; (ii) teríamos, pela mesma razão, que proibir pessoas que têm doenças genéticas sérias de fazerem sexo; (iii) o pensamento de que devemos evitar trazer pessoas com deficiências ao mundo parece um pensamento eugenista; (iv) podemos nos perguntar se faz sentido dizer que estamos “prejudicando” uma pessoa que ainda não nasceu ao ter um filho que sabemos que poderá ter deficiências genéticas. 

(2) Argumento da integridade da família: o incesto ameaça à integridade da família, que é uma unidade extremamente importante para a sociedade. O incesto, por exemplo, quebraria os laços familiares e ameaçaria o núcleo fundamental da organização social e por isso deveria ser legalmente proibido. Podemos elencar os seguintes problemas com esse argumento: (i) nem todas as relações incestuosas ameaçam a estrutura familiar; (ii) será mesmo que a integridade da família deve ter importância legal?; (iii) muitos comportamentos comumente aceitos, como desobediência aos pais ou divórcio, deveriam ser legalmente proibidos pelo mesmo princípio; (iv) esse argumento é autodestrutivo, porque proibir o incesto é também impedir que parentes que se amam possam formar uma família. 

(3) Argumentos dos papéis familiares: cada membro da família possui papéis em relação aos demais membros e relações incestuosas violariam esses papéis. Esse argumento apresenta os seguintes problemas: (i) além de atender a necessidades básicas, como um pai não negligenciar os filhos, papéis familiares deveriam ser uma questão individual; (ii) mesmo entre famílias consideradas normais, há grande variedade em como os membros desempenham seus papéis e essa variedade pode ser algo positivo. 

(4) Argumento da prevenção do abuso sexual: casos de incesto geralmente estão relacionados a casos de abuso sexual; proibir o incesto é uma forma de prevenir abusos sexuais, especialmente em casos de assimetria de poder, como entre pais e filhos. Esse argumento enfrenta os seguintes problemas: (i) muitos casos de incesto não envolvem uma assimetria de poder, como entre irmãos de idade similar; (ii) há casos de assimetria de poder em relações não-incestuosas, como em um relacionamento entre uma pessoa rica e uma pessoa pobre; (iii) leis contra incesto para prevenir abusos sexuais seriam redundantes, pois já há leis contra abusos sexuais e o incesto consentido não é abuso sexual. 

(5) Argumento da perversão: incesto é uma perversão e, portanto, deve ser condenado. O problema desse argumento é que, como perversão já é um termo moralmente carregado, condenar o incesto por ser uma perversão é um argumento circular. 

          Na ausência de argumentos que tenham sucesso em mostrar que o incesto consentido deveria ser ilegal, devemos concluir que o incesto deveria ser legalizado. Há, no entanto, também boas razões para legalizar o incesto consentido: 

(1) Leis contra o incesto são inúteis: se duas pessoas querem fazer sexo, elas irão fazê-lo independente de isso ser legalizado ou não; 

(2) Leis contra incesto causam sérios danos: pessoas são aprisionadas por praticarem incesto e prender pessoas é algo que diminui grandemente a qualidade de vida dessas pessoas. Ademais, mesmo que o incesto consentido seja imoral, criminalizá-lo pode não ser a melhor forma de desencorajá-lo; 

(3) A lei deveria respeitar a autonomia das pessoas: as pessoas devem ser livres para se engajar em sexo consentido com quem quiserem. 


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