PSICANÁLISE É PSEUDOCIÊNCIA?
Primeiro é preciso perguntar: "Será que a ideia de pseudociência faz sentido no campo da Psicologia?" A demarcação do que é ou não ciência ainda é muito controversa mesmo nas ciências naturais. Teses simples como fazer essa demarcação com base no verificacionismo ou no falsificacionismo fracassaram. Avança-se hoje uma abordagem de múltiplas virtudes ou múltiplos critérios de demarcação. Sabe-se, hoje, que a ideia de um “método científico” é um mito. Não há qualquer “método científico”, no máximo há certas virtudes teóricas flexíveis que todo cientista precisa compartilhar e alguns elementos sociais e institucionais que delimitam a prática científica.
Em filosofia da ciência as coisas vão desde abordagem realistas ingênuas até o anarquismo epistemológico como o de Feyerabend. Falar da Psicanálise como pseudociência sem entender que o problema da demarcação do que é ciência ou não é profundamente complexo, mesmo nas ciências naturais, é uma ingenuidade. Ingenuidade que poderia ser abalada bastando pensar em questões como a subdeterminação das teorias em relação às evidências (Quine) ou na metaindução pessimista que trazem um ceticismo saudável quanto à ciência. Claro que isso não significa de modo algum deixar de dar valor à ciência, de combater teorias da conspiração e práticas danosas em saúde. Não se pode, no entanto, ser acrítico dos pressupostos fisicalistas por trás da ciência nem de seus interesses e atravessamentos sociopolíticos.
Quando se trata das ciências humanas a questão se torna ainda mais complexa. Faz sentido falar de pseudociência em ciências humanas? Será que há, por exemplo, uma pseudosociologia, uma pseudofilosofia etc.? Uma tentativa ingênua seria transportar o suposto método das ciências naturais (que só existe em termos ideais) como modelo que as ciências humanas deveriam seguir, algo típico, por exemplo, do fisicalismo. Assim, fala-se que as ciências humanas devem fazer estudos eminentemente quantitativos, padronizáveis, repetíveis, sujeitos a meta-análises e só essas grandes metanálises devem servir de base para julgar a qualidade dessas teorias. Essa metodologia seria profundamente limitadora, se tomada como única ou a melhor no campo das ciências humanas, onde se inclui a Psicologia.
Outro elemento que precisa ser pensado é o que entendemos por “Psicanálise”. A Psicanálise Contemporânea não é freudismo e não se confunde com nenhum de seus teóricos clássicos (Anna Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan, Donald Winnicott, Françoise Dolto etc). Um apego acrítico e cego a Freud ou a qualquer teórico é, de fato, marca do que faz um pseudocientista. Mas a Psicanálise Contemporânea já ultrapassou Freud e mesmo qualquer teórico. Enquanto Freud via a Psicanálise como uma ciência natural, a Psicanálise Contemporânea nega a si mesma o lugar de ciência. Na verdade, a Psicanálise não é nem psicologia nem ciência, mas isso não significa que ela seja uma pseudociência.
A Psicologia científica, poderia se dizer, busca estudar a cognição humana por meio de métodos experimentais e constrói a partir disso uma psicoterapia que visa funcionar na resolução de sintomas psicológicos. A Psicanálise, por outro lado, é uma espécie de "filosofia da subjetividade", como advogarei adiante, que busca construir interpretações sobre a experiência humana. Essas interpretações servem de inspiração para uma prática clínica chamada "análise" que tem como objetivo, não a remissão de sintomas, mas possibilitar um processo de autoconhecimento e produção de sentidos.
É comum ouvir dos cientificistas na Psicologia que somente a Psicologia Cognitiva e a Terapia Cognitivo Comportamental possuem comprovação científica. Mas é preciso considerar que toda teoria em psicologia se baseia em pressupostos filosóficos. O Cognitivismo é baseado no representacionalismo, no funcionalismo e no computacionalismo. Tais perspectivas hoje já se mostram questionadas, em especial quando se considera os avanços do pós-cognitivismo, das discussões sobre irredutibilidade da consciência e noções como o enativismo sensório-motor, enativismo autopoiético e o enativismo radical. Tais propostas dialogam com contribuições que vem da fenomenologia, da Cibernética de segunda ordem e outros campos.
Um psicanalista pode, contudo, reconhecer todos os avanços do cognitivismo em psicologia. Pode reconhecer que a psicologia cognitiva explica corretamente o funcionamento da cognição, como funciona a atenção, a percepção, a memória e outros processos cognitivos. Mas, como ilustrado por problemas como os qualias ou o hard problem of consciousness, a dimensão da consciência fenomenológica, a experiência propriamente dita não pode ser apreendida por descrições funcionais do cognitivismo. Talvez seja justamente nessa dimensão fenomenológica e qualitativa que escapa às descrições científicas que a Psicanálise pode ter um lugar.
No que diz respeito à Terapia Cognitivo Comportamental, é dito que ela tem as melhores evidências científicas de funcionar. Mas uma afirmação dessa parece completamente ingênua. O que significa “funcionar” em psicoterapia? Geralmente toma-se acriticamente a ideia de que funcionar significa remissão de sintomas e prevenção de recaídas. Uma terapia que funciona é aquela que faz com que os sintomas de um transtorno ou problema psicológico desapareçam ou sejam amenizados no menor tempo possível e que esteja garantida a menor taxa de recaídas. Tudo aqui se torna bem complexo porque transtornos mentais ou sintomas psicológicos não são como entidades objetivas claras, mas muito mais constructos hipotéticos e estatísticos.
Mas precisamos olhar criticamente para essa ideia de “funcionar”. Quanto dessa ideia reflete uma noção própria das sociedades neoliberais marcadas pelo produtivismo? Uma pessoa com depressão, por exemplo, é uma pessoa que não está produzindo, que precisa ser afastada do emprego e que não está preparada para cumprir com suas tarefas e responsabilidades à altura do que a sociedade capitalista dela espera. É nesse contexto que "funcionar" como remissão de sintomas no menor tempo possível cabe bem. Fazer os sintomas entrarem em remissão é permitir que a pessoa volte a funcionar bem no trabalho, fazendo a roda do capitalismo continuar girando. Não espanta que terapias funcionais tenham tanto sucesso nos Estados Unidos, por exemplo, e lá seja mais comum rotular de pseudociência abordagens terapêuticas psicodinâmicas e de longo prazo.
É claro que isso não significa também a visão ingênua de que a Terapia Cognitiva Comportamental está a serviço do Capitalismo e visa ao mero ajustamento dos sujeitos. Isso não é verdade, a TCC ajuda a corrigir distorções cognitivas, lidar com pensamentos automáticos, trabalhar crenças centrais, intermediárias, entre outras. A TCC é uma forma efetiva de terapia, perfeitamente válida e importante. Mas terapias pós-cognitivistas têm salientado os limites das terapias cognitivas, como um certo solipsismo que dá ênfase exagerada nos aspectos internos do sujeito e pouco no ambiente; as limitações quanto a não se atentar para atravessamentos políticos, históricos, culturais e estruturais; a falta de ênfase nas emoções como se mudar cognições fosse suficiente para mudar emoções e comportamentos; a diretividade exagerada e muito estruturada das seções que tolha uma certa liberdade; entre outras coisas.
Um exemplo ilustrativo de como a pouca ênfase nos atravessamentos políticos, históricos, culturais e estruturais pode ser problemática é o famoso livro de Terapia Cognitivo Comportamental de “Pense Magro - A Dieta Definitiva de Beck” de Judith Beck. O livro ensina pessoas gordas a mudarem seu mindset e aprenderem a corrigir crenças e pensamentos automáticos para emagrecer. O livro se mostra completamente inconsciente de problemas como a gordofobia, machismo, ditadura da magreza e padrões estéticos exagerados. O lema da TCC de que o que importa é o como interpretamos o mundo e não o mundo externo em si, pode levar a um internalismo exagerado que ignora o peso das estruturas de opressão reais e concretas.
Essas críticas não são, é importante esclarecer, críticas à TCC, mas uma crítica ao uso acrítico de qualquer abordagem terapêutica. E esse uso acrítico pode se tornar problemático quando escondido sob as vestes do rótulo honorífico de “ciência”. O deferencialismo acrítico da ciência é problemático. É importante considerar, ainda, que a Terapia Cognitivo Comportamental não funciona para tudo nem para todos. Ela é muito efetiva quando se trata de depressão e ansiedade, mas não muito útil no caso de transtornos psicóticos e para pacientes com pouca habilidade em termos de aprendizagem pedagógica. Há também pessoas que podem não se adaptar bem a esse tipo de terapia e não podemos ignorá-las só porque elas são números pequenos em meta-análises padronizantes.
Um último ponto consiste em perguntar “por que uma psicoterapia funciona?” É difícil responder a isso. Há estudos que indicam que o que faz uma terapia funcionar é muito mais a experiência do terapeuta do que sua abordagem. Há pesquisas que sugerem que fatores como um bom vínculo entre terapeuta e paciente e a construção de um ambiente acolhedor sem julgamentos são muito mais preditores de que uma terapia funcionar do que propriamente a abordagem utilizada pelo psicoterapeuta. Ainda mais quando se considera que em terapias não-diretivas conceitos próprios da teoria do terapeuta não costumam ter muito peso, não é como se o psicanalista fosse dar aulas sobre o Édipo no consultório para o paciente.
Assim, é importante salientar que a discussão sobre evidências científicas de quais terapias funcionam é complexa. Há evidências de que terapias psicodinâmicas, como a psicanálise, funcionam no tratamento de transtornos mentais mesmo que em alguns casos com taxas relativamente menores que terapias cognitivo-comportamentais (TCC), por outro lado, há casos em que a TCC não tem muita evidência de funcionar, como para transtornos psicóticos como esquizofrenia e transtorno bipolar. Como considerado, há, ainda, pesquisas que sugerem que fatores comuns a diferentes abordagens (como empatia, escuta sem julgamento e vínculo) são mais determinantes para a terapia funcionar do que a orientação teórica do terapeuta.
Mas o que dizer propriamente da Psicanálise? Entendo que é importante ter em mente que a Psicanálise Contemporânea não é freudismo, como já dito. Até conceitos clássicos da psicanálise, como o de Complexo de Édipo, é criticado por alguns psicanalistas contemporâneos. O próprio projeto da Psicanálise como uma ciência natural já foi abandonado. Penso que podemos classificar a Psicanálise Contemporânea como uma “filosofia da subjetividade”. Considerando que a subjetividade humana não é completamente apreendida pelos métodos das ciências, o século XX viu florescer diferentes filosofias da subjetividade humana, pode-se classificar nesse campo a Fenomenologia (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Michel Henry etc.), o Existencialismo (Sartre), o Humanismo (Carl Rogers). Essas filosofias não são ciência, mas também não são pseudociências.
As filosofias da subjetividade podem ser classificadas como “não-ciências”. Elas tentam pensar a subjetividade humana a partir de uma abordagem mais qualitativa em diálogo interdisciplinar com diferentes campos do saber e com tradições filosóficas consolidadas. Essas “filosofias da subjetividade” podem inspirar formas de terapia. A fenomenologia e o existencialismo, por exemplo, influenciaram pessoas como Ludwig Binswanger, Karl Jasper, Hubertus Tellenbranch, Arthur Tatossian, Viktor Frankl entre outros, a se inspirarem nessas tradições para pensar abordagens terapêuticas que visam, não a remissão de sintomas, mas o oferecimento de um espaço acolhedor e não-diretivo de construção de sentidos.
A Psicanálise Contemporânea se enquadra bem como uma filosofia da subjetividade em diálogo e com aplicações em diferentes campos do saber. A Psicanálise surgiu da síntese de várias correntes modernas da linguística, antropologia entre outras. Ela também não se baseia em explicações simplistas nem idolatra cegamente um teórico (psicanálise não é freudismo). Psicanalistas historicamente revisaram suas concepções e não dão explicações fechadas unívocas para a causa de questões psíquicas. Reconhecer um lugar para a psicanálise é entender que há uma dimensão da subjetividade humana que não é completamente apreendida pelo método de uma psicologia científica e experimental.
A Psicanálise também trouxe importantes contribuições para o estudo de culturas, da arte, da linguística, da hermenêutica, da literatura entre outras. Ela também foi muitas vezes puoneira em discussões críticas sobre sexo, gênero, raça etc. Por isso, ela é interdisciplinar e mais ampla que a psicologia. É verdade que a Psicanálise não tem o rigor de uma psicologia científica nem tem uma clínica que "funcione" para resolver sintomas psicológicos de forma breve. Mas isso ocorre, não porque a psicanálise seja uma pseudociência, mas sim porque ela não é uma psicologia científica nem tem como objetivo "funcionar" nesses termos. Querer exigir que a psicanálise tenha o mesmo rigor de uma psicologia científica é simplesmente um erro categorial.
Parece-me que a Psicanálise é diferente do que vem sendo denominado como “pseudociência” mesmo em psicologia. O primeiro passo é entender, como já considerado, que há uma diferença entre uma escola filosófica de interpretação da subjetividade e a psicologia enquanto ciência. Hoje se discute a necessidade de entender que além da ciência e da pseudociência, há o que pode ser chamado de "não-ciência", que me parece ser onde melhor se encaixa a psicanálise, bem como filosofias da subjetividade como a fenomenologia, o existencialismo e o humanismo. Me parece que jogar essas tradições filosóficas sobre a subjetividade no mesmo pacote das pseudociências, como ontopsicologia ou constelação familiar, é um equívoco.
A Psicologia é uma um campo novo. Nem mesmo podemos estar seguros de dizer que a Psicologia seja uma “ciência”. Ainda assim, pode ser útil falar de “ciência” e “pseudociência” em Psicologia como termos estratégicos para lutar no campo das políticas públicas pela inclusão ou exclusão de certas práticas. Pode ser útil, por exemplo, em uma audiência pública falar de “pseudociência” para condenar as práticas machistas e danosas da constelação familiar, usando disso como argumento para a exclusão dessa prática dos serviços públicos. Mas estaremos sendo ingênuos se acharmos que existe de forma bem segura e delimitada uma “psicologia científica” e uma demarcação clara do que é pseudociência em psicologia.
A ciência em psicologia é muito mais algo delimitado institucionalmente do que delimitado por critérios epistemológico claros e rigorosos. Talvez porque esse tipo rigor simplesmente não seja possível em psicologia. O cientificismo já não faz sentido nas ciências naturais, é ainda mais estranho nas ciências humanas. Pesquisas vêm sendo desenvolvidas em departamentos de Psicologia em Universidades respeitadas usando métodos qualitativos diversos: método da cartografia, análise de sentido, estudos de caso, método esquizoanalítico, métodos fenomenológicos, hermenêuticos etc. Um cientificista pode achar que nada disso cabe no padrão de ouro das meta-análise de pesquisas quantitativas padronizadas com grupos cegos e de controle. Mas a verdade é que na Psicologia não há qualquer consenso quanto aos seus métodos, definição, conteúdo e objeto.
Concluo, portanto, que não faz sentido algum chamar a Psicanálise Contemporânea de pseudociência. É verdade que algumas teses adotadas por alguns psicanalistas sobre as causas de alguns problemas psicológicos podem ser ditas pseudocientíficas, mas isso é diferente de denominar a Psicanálise inteira como pseudociência. Diferente de pseudociências, a psicanálise está ancorada em uma tradição filosófica consolidada no campo das interpretações da subjetividade e institucionalmente delimitada em uma comunidade acadêmica que desenvolve pesquisas baseadas em seu aporte teórico. A Psicanálise segue ainda reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia no Brasil e continua uma área de pesquisa e pratica frutífera, relevante e promissora.
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