UMA DEFESA DO ABORTO


 

O objetivo deste texto é discutir a questão do aborto considerando as dimensões éticas e sociais relativas ao debate. Para tanto considera-se a origem da condenação ao aborto ao longo da História do Cristianismo, o problema ético do debate a respeito do direito à vida e da autonomia da mulher em relação ao próprio corpo e, por fim, discute-se o problema da maternidade compulsória requerida das mulheres pelo dispositivo materno. Para tanto, este texto compõe-se das seguintes partes: (i) História da Condenação do Aborto; (ii) O Problema Ético do Aborto; (iii) Aborto e Dispositivo Materno.


I. HISTÓRIA DA CONDENAÇÃO DO ABORTO


            O pensamento conservador costuma atribuir a origem da condenação do aborto à Bíblia, no entanto, isso é um equívoco. Na mentalidade da época da Bíblia não se tinha a ideia do feto e mesmo do bebê como uma vida sagrada, uma alma ou um ser inocente. No Antigo Testamento, nas guerras entendia-se que os israelitas tinham o direito de exterminar nações inimigas, e isso incluía matar crianças, bebês de colo e mulheres grávidas. Entendia-se que era uma ordenança de Deus que, em guerras contra nações consideradas ímpias a serem exterminadas, grávidas e infantes fossem mortos: “Destruíram toda a cidade para Javé, exterminando ao fio da espada homens, mulheres, crianças, idosos, bois, ovelhas e jumentos; todos os seres vivos que nela estavam” (Josué 6:21) “Agora vá, golpeie os amalequitas e entregue-os à destruição, junto com tudo o que eles têm. Não os poupe; mate homens e mulheres, crianças e bebês...” (1 Samuel 15:3)

Além disso, conforme defendem alguns intérpretes, o próprio Deus prescrevia um ritual abortivo para mulheres supostamente adúlteras. Toda vez que um marido acusava uma mulher de adultério e ela pudesse estar grávida de outro, ela deveria tomar uma espécie de água amarga e se a mulher abortasse depois de ingerir a água amarga, estaria comprovado que ela havia cometido adultério, podendo ser apedrejada até a morte:

 Fala aos filhos de Israel, e tens de dizer-lhes: Caso a esposa de um homem se desencaminhe por cometer um ato de adultério e outro homem tenha deitado com ela e tenha emitido semente, e isso fique oculto dos olhos de seu esposo e permaneça escondido e ela, da sua parte, se tenha aviltado, mas não haja testemunhas contra ela e ela mesma tenha sido apanhada e o espírito de ciúme tenha vindo sobre o marido e ele suspeite da traição de sua esposa, quer ela realmente seja culpada quer a suspeita seja falsa, então o marido tem de trazer sua esposa para o sacerdote... e o sacerdote tem de tomar a água amarga num vaso de barro, e o sacerdote tem de tomar um pouco de pó do chão do tabernáculo e misturá-lo com a água... E o sacerdote tem de fazer a mulher jurar e tem de dizer a ela: ‘Se nenhum homem se deitou contigo, ... sê livre do efeito desta água amarga amaldiçoadora. Mas, ... caso algum homem, além do teu esposo, tenha emitido semente dentro de ti... Esta água amaldiçoadora entrará no seu ventre, de modo que ele decaia e inche... E terá de ser que, se a mulher cometeu adultério, então a água amaldiçoadora fará seu ventre inchar e decair... No entanto, se a mulher for inocente, então ficará livre de tal maldição, e conceberá a semente” (Números 5:11-34)

Enquanto o Antigo Testamento exigia pena de morte para o assassinato, uma pessoa que ferisse uma mulher grávida a ponto de ela abortar, precisaria apenas pagar uma indenização pelo dano de ter privado a família da possibilidade de ter um filho. Isso significa que o feto não tinha o mesmo valor de uma vida humana adulta para a concepção bíblica: “Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida” (Êxodo 21:22-23).

No entanto, embora a Bíblia não contenha uma condenação ao aborto, suas concepções sobre o papel da mulher contribuíram para que posteriormente o aborto passasse a ser visto como um pecado. Para a Bíblia, a mulher é a principal culpada do pecado original, porque foi Eva a primeira a cair na tentação da serpente e comer do fruto proibido. Como castigo, a mulher foi punida com as dores do parto e é por meio da maternidade que ela pode se redimir do seu pecado: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:16) “E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em pecado. A mulher se redimirá, porém, dando à luz filhos, se permanecer com modéstia na fé, no amor e na santificação.” (1 Timóteo 2:14-15).

A noção de que o aborto seria um pecado passou a ser defendida logo no segundo século da História cristã pelos primeiros pais da Igreja, como, por exemplo, Tertuliano (160-220), que escreveu: “No nosso caso, sendo um assassinato de uma vez por todas proibido, não podemos destruir nem mesmo o feto no útero, enquanto o ser humano ainda deriva sangue de outras partes do corpo para seu sustento. Impedir um nascimento é apenas uma morte mais rápida de um homem; não importa se trata-se de tirar uma vida que nasceu ou destruir uma que ainda está por nascer. Trata-se de um ser humano; já se tem o fruto em sua semente” (Apologia 9: 8). Essa opinião, como veremos, não era consenso entre os primeiros cristãos, pois havia um debate sobre se o aborto realmente poderia ser igualidado ao assassinato

Um dos argumentos usados pelos cristãos contra o aborto foi a ideia de alma: “Quanto à questão moral (do aborto), o que se tem é o argumento cristão de que o feto tem uma alma.” (Simone de Beauvoir. Segundo Sexo II, parte 2.2). No entanto, nos primeiros séculos de História da Igreja, ainda havia um debate sobre a partir de qual momento o feto passava a ter uma alma. Santo Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, embora considerasse o aborto um pecado, entendia que, se ocorrido nos primeiros estágios de gravidez, ele não poderia ser considerado um homicídio. Comentando Êxodo 21:22 que, como já consideramos, mostra que o aborto não era considerado pela Bíblia como um assassinato, Agostinho escreve:

“Pois bem, o fato de o autor não querer que o nascituro pertencesse ao homicídio prova que ele pensava que não era o homem que se carregava no ventre da mãe. Aqui costuma-se colocar o problema da alma, isto é, de que aquilo que não está formado não pode ser considerado animado e, portanto, não seria homicídio, pois não se pode afirmar isso de um ser que ainda não tem alma. ... O grande problema da alma não deve ser resolvido apressadamente com a imprudência de uma sentença incontestável, a lei não quis que o aborto fosse considerado um homicídio, porque ainda não pode ser chamada de alma vivente o que está em um corpo que carece de sentidos, se está, portanto, em uma carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.” (Agostinho, Questões em Êxodo, Q80)

Agostinho nos alerta que não podemos ser categóricos em dizer quando a alma racional é infundida no feto. A biologia antiga entendia essa infusão como tardia e não me parece que qualquer avanço na biologia moderna justifica abandonar algum tipo de infusão mediata ou dizer que a alma racional está presente desde a concepção. Desse modo, o aborto nos estágios iniciais da gravidez era considerado pecado, mas não homicídio, pois o feto, ainda em formação, não poderia ser considerado uma alma nem um ser dotado de sentidos. Tomás de Aquino, posteriormente, defenderá que o feto passa a ter uma alma racional 40 dias depois da concepção para os meninos e 60 dias depois da concepção para as meninas. Em 847 d.C., no entanto, o Primeiro Concílio de Mogúncia declarou o aborto como sendo um homicídio: “se é homicida quem destruiu com aborto o que foi concebido no útero, quanto mais será impossível desculpar-se de ser homicida aquele que matou uma criancinha que tinha ao menos um dia?”. A partir da Idade Média, portanto, a Igreja emitiu diferentes documentos condenando a prática do aborto. A Declaração do Vaticano sobre o Aborto Provocado de 1974 resume as opiniões da Igreja sobre o aborto na História cristã:

“Assim: o primeiro Concílio de Mogúncia, em 847, confirma as penas estabelecidas por Concílios precedentes contra o aborto; e determina que seja imposta a penitência mais rigorosa às mulheres «que matarem as suas crianças ou que provocarem a eliminação do fruto concebido no próprio seio» . O Decreto de Graciano refere estas palavras do Papa Estêvão V: « É homicida aquele que fizer perecer, mediante o aborto, o que tinha sido concebido ».  Santo Tomás, Doutor comum da Igreja, ensina que o aborto é um pecado grave contrário à lei natural. Nos tempos da Renascença, o Papa Sisto V condena o aborto com a maior severidade. Um século mais tarde, Inocêncio XI reprova as proposições de alguns canonistas «laxistas», que pretendiam desculpar o aborto provocado antes do momento em que certos autores fixavam dar-se a animação espiritual do novo ser. Nos nossos dias, os últimos Pontífices Romanos proclamaram, com a maior clareza, a mesma doutrina. Assim: Pio XI respondeu explicitamente às mais graves objecções; Pio XII excluiu claramente todo e qualquer aborto directo, ou seja, aquele que é intentado como um fim ou como um meio para o fim; João XXIII recordou o ensinamento dos Padres sobre o carácter sagrado da vida, «a qual, desde o seu início, exige a acção de Deus criador ». E bem recentemente, ainda, o II Concílio do Vaticano, presidido pelo Santo Padre Paulo VI, condenou muito severamente o aborto: « A vida deve ser defendida com extremos cuidados, desde a concepção: o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis». O mesmo Santo Padre Paulo VI, ao falar, por diversas vezes, deste assunto, não teve receio de declarar que a doutrina da Igreja « não mudou; e mais, que ela é imutável»”

 

Que a Igreja Medieval tenha passado a condenar o aborto é algo que pode ser explicado pelos fatos de que gerar filhos era importante para fornecer mão de obra para o trabalho em um momento em que a taxa de mortalidade infantil era alta, que pestes dizimavam a população e que a expectativa de vida era baixa. Outra razão está em que a Igreja via, com base na Bíblia, a maternidade como uma obrigação da mulher, uma forma de ela se redimir do pecado original. Por fim, em um momento mais tardio, a Igreja entenderá que o feto é uma alma e que o aborto deve ser equiparado ao assassinato. Mas, como considerado, nos tempos bíblicos não havia uma condenação ao aborto e, nos primeiros séculos da História da Igreja, como ilustrado pelas opiniões de Agostinho e Tomás de Aquino, acreditava-se que nos primeiros estágios da gravidez o feto não possuía uma alma e que, portanto, o aborto precoce não era assassinato.

A condenação cristã reacionária ao aborto é claramente hipócrita. A teologia cristã reacionária sofre de uma contradição enorme ao lidar com o aborto. Seu lema é “aborto é sempre assassinato”, se a vida de um feto lhe é retirada houve homicídio, não haverá exceções. Que esse feto seja fruto de um estupro ou que coloque a vida de uma mulher em risco, não importa, é dever cristão defender incondicionalmente a vida do feto. Mas quando se trata da vida de uma pessoa adulta, a teologia conservadora não tem coragem de dizer “Matar uma pessoa adulta é sempre assassinato”. Logo que se diz isso, o cristão conservador aparece para apresentar exceções, ele diz: “é claro que se pode matar um adulto como no caso da pena de morte”, “bandido bom é bandido morto”, “o homicida deve pagar com a própria vida”.

 O cristão conservador não demorará para admitir que matar um adulto não é errado em legítima defesa. Que matar em uma "guerra justa" é aceito por Deus. Dirá também que se Deus mandar matar, então é para matar, incluindo bebês inocentes como nos genocídios do Antigo Testamento. Assim, para a teologia conservadora, a vida do feto tem valor incondicional, mas a partir do momento que ele nasce, matá-lo nem sempre é errado. Em todas essas formulações, a moral conservadora cristã postula que a vida de um feto vale mais que a vida de um humano que já nasceu. Mas na verdade, o que o Cristianismo postula é que a defesa da vida é interessante quando ela serve de mecanismo para negar a emancipação da mulher.

 

II. O PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO

 

            Tendo considerado a origem da condenação do aborto ao longo da História, surge a questão se o aborto é eticamente condenável. A resposta a essa questão não é simples. No entanto, algumas reflexões poderão lançar luz sobre o debate ético. A grande questão que deve ser levantada é: a partir de qual momento a vida humana se torna inviolável? Primeiramente, é preciso considerar que mesmo um óvulo ou um espermatozoide são seres vivos e células especificamente humanas. É praticamente consenso que óvulos e espermatozoides não têm direito à vida, portanto, não é suficiente que algo seja uma vida humana para que seja considerado inviolável.

            A maior parte dos conservadores, no entanto, advoga que a vida humana se torna inviolável com a união do óvulo com o espermatozoide na concepção, quando ocorre a formação do zigoto. Todavia, a defesa dessa posição carrega o problema de que até o décimo quarto dia de gestação, o embrião ainda pode se dividir e formar gêmeos. Se esse é o caso, suponhamos que no dia 14 o embrião X se divida e forme o organismos Y e Z. Se desde a fecundação o embrião X já é um “alguém” ou uma “pessoa” com direito à vida, como pode se dar que essa pessoa X se divida em duas e forme uma pessoa Y e Z? E depois da divisão, Y e Z são duas pessoas diferentes de X? E, se são, o que ocorreu com a pessoa X, será que ela morreu para que surgissem as pessoas Y e Z? Como se vê, não faz sentido considerar o zigoto um organismo individual, muito menos uma pessoa com direito à vida.

            Se queremos, na verdade, descobrir qual o momento a partir do qual um organismo humano passa a ter direito à vida, é preciso responder, primeiramente, o que nos define enquanto “alguém” e qual a extensão de período de nosso direito à vida. A pergunta pelo “alguém” não parece ser corretamente respondida pela mera constatação da existência de nosso organismo enquanto corpo anatômico. A nossa identidade no sentido do “alguém” que nós somos só faz sentido quando se considera a existência de nossa vida mental. Somos mentes corporificadas e é a existência em nós de uma atividade mental que nos torna seres pessoais.

Para entender melhor o argumento de que não somos meramente organismos corpóreos podemos recorrer a uma analogia. Imaginemos que duas pessoas, a pessoa A e a pessoa B, estejam em um carro. De repente a pessoa A tem seu corpo massacrado no acidente, conservando-se inteira somente sua cabeça. A pessoa B, por outro lado, tem sua cabeça destruída, restando-se apenas o seu corpo. Imaginemos que para salvar pelo menos uma vida, o médico una a cabeça da pessoa A ao corpo da pessoa B. Entendendo que o centro biológico da consciência emerge do cérebro, ao retomar a consciência, essa pessoa terá a memória da pessoa A, embora no corpo de B. Quem é a pessoa que retomou a consciência?  Parece ser correto responder que, embora no corpo de B, a pessoa que temos diante de nós “é” a pessoa A. Isso significa que aquilo que somos não é definido por uma questão de constituição corporal, nós não somos meros organismos corporais, antes somos mentes corporificadas, cujo centro de nossa identidade pessoal está no cérebro.

A segunda questão diz respeito à extensão de nosso direito à vida. Perguntar por “quando se encerra o nosso direito à vida?” pode nos guiar uma resposta sobre “quando se inicia nosso direito à vida?”. Nossa vida termina quando se constata a morte cerebral. Ainda que o corpo de uma pessoa esteja com seus órgãos funcionando, quando seu cérebro para de funcionar de forma irreversível, podemos dizer que ela morreu. É por isso, que, muitos consideram que já é legalmente correto doar os órgãos de uma pessoa após morte cerebral, ainda que o resto de seu corpo ainda esteja vivo. Se a vida humana se estende até a morte cerebral, podemos entender que é quando se inicia a atividade cerebral que temos diante de nós um “alguém” com direito à vida humana. Cabe, então, perguntar, quando se inicia a nossa vida mental. O professor Alcino Bonella responde:

“Vamos admitir a hipótese de que uma existência especificamente humana, de alguém como eu e você, por exemplo, começa apenas quando o córtex cerebral plenamente formado tem capacidade de tornar o organismo que o sustenta um ser consciente. Já sabemos que isso, na melhor evidência disponível, ocorre em torno da vigésima semana de gestação de um feto humano no útero materno. A partir deste evento é que o cérebro estará apto a processar ao menos minimamente sensações de dor, e vivenciar os rudimentos da vida mental propriamente dita. Se fosse verdade que começamos a existir neste estágio, faria sentido pensar que deixamos de existir, como indivíduos especificamente humanos, quando nosso córtex cerebral morrer definitivamente, mesmo que nosso restante organismo biológico continue momentaneamente (ou artificialmente, com ajuda tecnológica) a funcionar, e bem” (Quando começa a vida?)

 

Que o feto não sente dor antes da vigésima semana de gestação é o que defende uma revisão sistemática multidisciplinar de mais de 360 artigos científicos (aqui). Podemos entender, então, que o direito à vida se estende de quando começa a vida humana mental em sentido estrito (vigésima semana de gestação) até o fim da vida humana mental (morte cerebral). O que importa nas discussões sobre direito à vida é, portanto, a vida humana mental, tanto é que se considera que uma pessoa morreu com a morte cerebral, ou seja, com o fim da vida mental. Sem vida mental em sentido estrito não há "alguém", não existe "pessoa". Por isso o aborto antes do início da vida mental não é matar alguém. Os abortos provocados, em geral, acontecem antes da vigésima semana de gestação (apenas cerca de 1% dos abortos ocorrem após esse período - WhoSeeks Abortions at or After 20 Weeks?). Podemos resumir os seguintes pontos:

1. Espermatozoide e óvulo já são vidas humanas

2. O zigoto não é uma vida humana individual, pois ele ainda pode se dividir formando mais de um organismo.

3. O embrião só se torna um organismo individual após 2 semanas de gestação.

4. É na vigésima semana de gestação que o feto passa a ter vida mental em sentido estrito (no sentido de ser capaz de experienciar minimamentes sensações como dor), se tornando uma pessoa.

Para os que acreditam em alma, poderia ser defendida ainda uma compreensão de animação mediata, em que a alma é infundida no feto em etapas (alma vegetativa - alma animal - alma racional). Se nós entendermos consciência, conforme surge na vigésima semana, a alma racional, e talvez até a animal, só poderia ser conferida ao feto a partir da vigésima semana.  Vale ressaltar que aqui consciência não está sendo entendida como uma operação da alma, como aquele retorno de segunda ordem ao nossos estados mentais que caracterizam a autoconsciência. Consciência aqui está sendo compreendida com a capacidade de ter experiência que é condição para que tenhamos não só operações mentais, mas até mesmo faculdades e disposições. Nesse caso, até mesmo para dizer que um feto tem, por exemplo, intelecto potencial, seria preciso primeiro que ele fosse um ser consciente ou experiencial. 

A questão do aborto levanta ainda o problema complexo de que estamos diante de uma situação única: a de uma vida humana individual dentro do corpo de outra pessoa, ligada a esse corpo recebendo dele a nutrição e causando modificações intensas nesse corpo. Se deve colocar aqui em discussão, portanto, um direito para além da discussão sobre o direito à vida, que vem a ser o direito da mulher sobre o seu próprio corpo. É verdade que o feto não é uma mera extensão do corpo da mulher, mas o feto está dentro do corpo da mulher e pertence à mulher o direito de decidir carregar ou não uma outra vida dentro de seu próprio corpo. É somente à mulher que pertence o direito de decidir sobre o que se desenrola no espaço interior de seu corpo. Para destacar o direito da mulher sobre o próprio corpo, a feminista Judith Thompson usa a seguinte analogia:

“Você acorda de manhã e se vê unida, costa com costa, a um famoso violinista inconsciente. Ele tem uma grave doença nos rins, e a Sociedade dos Amantes da Música descobriu que só você tinha o tipo sanguíneo que podia salvá-lo. Eles sequestram você e o sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu. O diretor do hospital lhe diz: 'Jamais teríamos permitido que a Sociedade fizesse isso, mas, agora que está feito, não podemos desligar o violinista de você porque isso significaria matá-lo. Mas não se preocupe, o processo vai durar apenas nove meses, depois você estará livre para ir embora.'Você é moralmente obrigada a aceitar essa situação? Não há dúvida de que seria muito bacana de sua parte, uma grande bondade. Mas você tem de assentir?” (Uma Defesa do Aborto)

 

            A resposta evidentemente é não. Não se pode ignorar o fato de que o corpo que abriga uma outra vida é o corpo da mulher e, portanto, ainda que uma pessoa considerasse o aborto imoral, não poderia ignorar essa constatação. A única pessoa a quem cabe a decisão de abrigar no seu corpo uma outra vida é a mulher, a quem esse corpo pertence. A analogia do violinista, é claro, é uma metáfora, e como tal ela possui limitações e pode não se aplicar adequadamente a todo caso em que ocorre um aborto, mas ela fornece intuições importantes para não ignorar o fato de que o feto se encontra dentro do corpo da mulher e que isso suscita a discussão a respeito do direito da mulher em escolher ou não continuar abrigando uma vida no interior de seu próprio corpo.

         A defesa do aborto, no entanto, não deve significar que o aborto seja algo bom. Não se trata de defender que mais pessoas abortem ou de ignorar que o aborto seja, além de uma escolha difícil, algo que pode produzir sofrimento para a mulher. Como diz Simone de Beauvoir: "Embora o aborto não possa ser considerado um assasinato, é preciso considerar que ele não é uma simples prática anticoncepcional: houve um acontecimento que teve um começo absoluto e cujo desenvolvimento foi interrompido. Certas mulheres sofrem pela recordação desse filho que não nasceu." (Segundo Sexo II). A defesa do aborto é, muitas, a defesa da autonomia da mulher em escolher ou não levar adiante uma gravidez, sem que tenha de fazer isso com uma carga de culpa, condenação ou criminalização.

       Isso não significa que todos os defensores da imoralidade e criminalidade do aborto sejam hipócritas ou mal intencionados. Certamente há no campo conservador bons argumentos contra o aborto que partem de uma preocupação sincera com a vida e direitos humanos. Tais argumentos precisam ser considerados com cuidado. Todavia, precisamos sempre colocar a questão do aborto sob a ótica da condição da mulher em nossa sociedade e não só do feto.


III. ABORTO E DISPOSITIVO MATERNO

 

            Uma última discussão importante em relação ao aborto é sua relação com questões sociais. O feminismo, de diferentes vertentes, tem chamado nossa atenção para como o patriarcado oprime as mulheres. Os homens, em geral, se veem livres para fazer sexo com diversas mulheres, as engravidarem e não se responsabilizarem pelo filho. Mas mesmo pais que em alguma medida reconhecem os filhos, em geral entendem que as tarefas de cuidado são obrigações das mulheres. Pais que geram filhos podem ter poucos prejuízos para sua vida em geral, o mesmo não ocorre com as mulheres. Dificilmente um homem precisa desistir do emprego, da carreira ou de planos para cuidar de um filho, o mesmo não ocorre com as mulheres que, muitas vezes, não podem encontrar meios de conciliar maternidade e carreira. Essas questões sociais não podem ser esquecidas quando se discute a questão do aborto.

            A autora feminista Valeska Zanello, no livro Saúde mental, Gênero e Dispositivos, chama de Dispositivo Materno, a construção da ideia de que ser mãe e cuidar é algo natural do instinto da mulher. A maternidade é, assim, um trabalho não-remunerado cuja responsabilidade recai toda sobre a mulher. Além disso, mesmo que uma mulher não tenha filhos, ela será demandada a ser cuidadora, como cuidar de idosos ou adentrar em empregos voltados para o cuidado (enfermeira, professora infantil, empregada doméstica, babá, etc.). Essa exigência é historicamente construída, pois há culturas e momentos históricos, em que o cuidado do filho pertence à toda comunidade, em que gestar e cuidar não estão necessariamente vinculados, que não existe a ideia de que o bebê merece uma maternagem especial ou que o cuidado materno era realizado pelas amas de leite e não pela mãe biológica.

            É, em grande medida, devido ao dispositivo materno, que o aborto aparece aos olhos da sociedade como algo assustador e é, pela mesma razão, que o fato de que pais abandonam seus filhos não recebe o mesmo rechaço. É que, para o patriarcado, que a mulher não seja mãe significa que ela está indo contra a natureza, mas o que se ignora é que, aquilo que se chama natureza, é, na verdade, a naturalização de uma exigência social historicamente determinada. Aos olhos da visão cristã, é ainda uma falta grave que uma mulher decida não ser mãe porque assim ela deixa de cumprir aquilo que a pode redimir do pecado original de Eva. As mulheres devem, para o Cristianismo, seguir o ideal da Virgem Maria que, aceitando de bom grado a gravidez, trouxe a reversão da Queda.

            O dispositivo materno impõe, ainda, um falso ideal de maternidade. Retrata-se a maternagem como uma tarefa feliz na qual a mulher encontra sua realização. Há, pois, uma crença social de que mulheres nasceram para ser mães e que é sendo mães que elas irão ser felizes, completas e realizadas, cumprindo sua vocação no mundo. A própria psicanálise contribuiu por um tempo com essa noção ao pensar na mulher como um ser sem falo e, portanto, incompleto que só se completa ao ter um bebê que passará a ocupar o espaço fálico simbólico. O problema é que a maternidade não é uma tarefa fácil, mas sim uma árdua tarefa  envolvendo sofrimento, dificuldades, lutas, frustrações, medos e culpas. Muitas vezes esses sofrimentos são patologizados como ocorre sob o diagnóstico da depressão pós-parto. As mães, ao verem que não cumprem com o ideal imposto pela maternidade compulsória, se culpam por se culpar, se culpam por sofrer, se culpam por não cumprirem o ideal da mãe suficientemente boa, um ideal que, a bem da verdade, é inatingível.

            Há, ainda, o mito do amor materno, se é natural da mulher o cuidar, uma mãe que não ama seu filho é alguém que falhou em cumprir sua vocação dada pela natureza. Amar se torna uma tarefa sagrada incumbida por Deus por meio da qual a mulher realiza seu instinto mais próprio. Assim, rejeitar um filho é visto como uma falta grave. Mas não só isso, sentir raiva do bebê ou da maternidade se torna reprovávell aos olhos da sociedade:

“Em geral, o que se percebe é que a pessoa da mulher ficou cada vez mais subsumida nas funções maternas e domésticas (de sua própria casa e/ou na casa de outras mulheres). A mensagem propalada é de que uma boa mãe deveria se apagar em favor de suas responsabilidades para com seus filhos, com a promessa de felicidade. A partir de então, não amar os filhos tornou-se um crime, uma aberração, a qual deveria ser evitada, ou sendo impossível, disfarçada. Por outro lado, a mãe foi cada vez mais sacralizada: criou-se uma associação de um novo aspecto místico à maternidade, a de santa.” (Valeska Zanello - Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a Psicologia. In: CFP - ABORTO E (NÃO) DESEJO DE MATERNIDADE(S))

 

A maternidade compulsória cumpre um papel na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista. As mulheres precisam exercer o cuidado tanto do filho como do marido para garantir que o homem se beneficiei de privilégios que o permitam se realizar no mundo do trabalho: “Mulheres sustentam homens ao prover cuidado infantil, apoio emocional, refeições e gerenciamento da casa GRATUITAMENTE, para que esses homens possam ter tempo e energia para investir em suas carreiras” (@thejuproject). Isso não significa que o capitalismo seja inerentemente ruim, mas que uma sociedade capitalista justa precisa reconhecer o valor desse trabalho não-remunerado e invisibilizado da mulher.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            A condenação do aborto custa vida de mulheres, principalmente negras, que morrem devido à clandestinidade: “Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e sem companheiro” (As maiores vítimas do aborto no Brasil). Isso mostra a urgência do debate ético e social em relação ao aborto na medida em que ele se apresenta como uma questão de saúde pública. É preciso, pois, salientar a importância de lutar pelo direito da mulher em escolher levar ou não adiante uma gravidez tendo meios garantidos pelo Estado de realizar isso de forma segura.

Vimos que, a condenação do aborto se construiu no Ocidente a partir de uma imposição da Igreja Cristã ao longo da História a partir de uma compreensão de que a maternidade é o meio pelo qual a mulher se redime do pecado original. Vimos que, do ponto de vista ético, o direito à vida está relacionado a presença da atividade do córtex cerebral por volta da vigésima semana de gestação, sendo que antes desse momento o feto não pode ser considerado uma pessoa, além de ser incapaz de experienciar dor. Tratamos ainda da questão do direito da mulher de escolher ou não abrigar dentro do próprio corpo uma vida. Por fim, discutimos como o dispositivo materno está por trás da condenação social ao aborto na medida que impõe às mulheres a maternidade como algo obrigatório e natural. Finalizo com a declaração de Simone de Beauvoir, que escreveu: “A verdade é que a condenação do aborto é parte da recusa a tudo o que pode libertar a mulher.” (Simone de Beauvoir. Segundo Sexo II).


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