UMA DEFESA DO ABORTO
O objetivo deste texto é
discutir a questão do aborto considerando as dimensões éticas e sociais
relativas ao debate. Para tanto considera-se a origem da condenação ao aborto
ao longo da História do Cristianismo, o problema ético do debate a respeito do direito
à vida e da autonomia da mulher em relação ao próprio corpo e, por fim, discute-se
o problema da maternidade compulsória requerida das mulheres pelo dispositivo
materno. Para tanto, este texto compõe-se das seguintes partes: (i) História da
Condenação do Aborto; (ii) O Problema Ético do Aborto; (iii) Aborto e Dispositivo
Materno.
I. HISTÓRIA DA CONDENAÇÃO DO ABORTO
O pensamento
conservador costuma atribuir a origem da condenação do aborto à Bíblia, no
entanto, isso é um equívoco. Na mentalidade da época da Bíblia não se tinha a
ideia do feto e mesmo do bebê como uma vida sagrada, uma alma ou
um ser inocente. No Antigo Testamento, nas guerras entendia-se que os israelitas
tinham o direito de exterminar nações inimigas, e isso incluía matar crianças,
bebês de colo e mulheres grávidas. Entendia-se que era uma ordenança de Deus
que, em guerras contra nações consideradas ímpias a serem exterminadas, grávidas e infantes fossem mortos: “Destruíram toda a cidade para Javé, exterminando ao fio da
espada homens, mulheres, crianças, idosos, bois, ovelhas e jumentos; todos os
seres vivos que nela estavam” (Josué 6:21) “Agora vá, golpeie os amalequitas e
entregue-os à destruição, junto com tudo o que eles têm. Não os poupe; mate
homens e mulheres, crianças e bebês...” (1 Samuel 15:3)
Além disso, conforme defendem
alguns intérpretes, o próprio Deus prescrevia um ritual abortivo para mulheres
supostamente adúlteras. Toda vez que um marido acusava uma mulher de adultério
e ela pudesse estar grávida de outro, ela deveria tomar uma espécie de água
amarga e se a mulher abortasse depois de ingerir a água amarga, estaria
comprovado que ela havia cometido adultério, podendo ser apedrejada até a morte:
“Fala aos filhos de Israel, e tens de
dizer-lhes: Caso a esposa de um homem se desencaminhe por cometer um ato de
adultério e outro homem tenha deitado com ela e tenha emitido semente, e isso
fique oculto dos olhos de seu esposo e permaneça escondido e ela, da sua parte,
se tenha aviltado, mas não haja testemunhas contra ela e ela mesma tenha sido
apanhada e o espírito de ciúme tenha vindo sobre o marido e ele suspeite da
traição de sua esposa, quer ela realmente seja culpada quer a suspeita seja
falsa, então o marido tem de trazer sua esposa para o sacerdote... e o sacerdote
tem de tomar a água amarga num vaso de barro, e o sacerdote tem de tomar um
pouco de pó do chão do tabernáculo e misturá-lo com a água... E o sacerdote tem
de fazer a mulher jurar e tem de dizer a ela: ‘Se nenhum homem se deitou contigo,
... sê livre do efeito desta água amarga amaldiçoadora. Mas, ... caso algum
homem, além do teu esposo, tenha emitido semente dentro de ti... Esta água
amaldiçoadora entrará no seu ventre, de modo que ele decaia e inche... E terá
de ser que, se a mulher cometeu adultério, então a água amaldiçoadora fará seu
ventre inchar e decair... No entanto, se a mulher for inocente, então ficará
livre de tal maldição, e conceberá a semente” (Números 5:11-34)
Enquanto o Antigo Testamento exigia
pena de morte para o assassinato, uma pessoa que ferisse uma mulher grávida a
ponto de ela abortar, precisaria apenas pagar uma indenização pelo dano de ter privado a família da possibilidade de ter um filho. Isso significa
que o feto não tinha o mesmo valor de uma vida humana adulta para a concepção
bíblica: “Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for
causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado,
conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes. Mas se
houver morte, então darás vida por vida” (Êxodo 21:22-23).
No entanto, embora a Bíblia
não contenha uma condenação ao aborto, suas concepções sobre o papel da mulher
contribuíram para que posteriormente o aborto passasse a ser visto como um
pecado. Para a Bíblia, a mulher é a principal culpada do pecado original,
porque foi Eva a primeira a cair na tentação da serpente e comer do fruto proibido.
Como castigo, a mulher foi punida com as dores do parto e é por meio da
maternidade que ela pode se redimir do seu pecado: “E à mulher disse:
Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e
o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” (Gênesis 3:16) “E Adão
não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em pecado. A mulher se
redimirá, porém, dando à luz filhos, se permanecer com modéstia na fé, no amor
e na santificação.” (1 Timóteo 2:14-15).
A noção de que o aborto seria
um pecado passou a ser defendida logo no segundo século da História cristã pelos
primeiros pais da Igreja, como, por exemplo, Tertuliano (160-220), que escreveu: “No
nosso caso, sendo um assassinato de uma vez por todas proibido, não podemos
destruir nem mesmo o feto no útero, enquanto o ser humano ainda deriva sangue
de outras partes do corpo para seu sustento. Impedir um nascimento é apenas uma
morte mais rápida de um homem; não importa se trata-se de tirar uma vida que
nasceu ou destruir uma que ainda está por nascer. Trata-se de um ser humano; já
se tem o fruto em sua semente” (Apologia 9: 8). Essa opinião, como veremos, não era consenso entre os primeiros cristãos, pois havia um debate sobre se o aborto realmente poderia ser igualidado ao assassinato
Um dos argumentos usados pelos
cristãos contra o aborto foi a ideia de alma: “Quanto à questão moral (do
aborto), o que se tem é o argumento cristão de que o feto tem uma alma.” (Simone
de Beauvoir. Segundo Sexo II, parte 2.2). No entanto, nos primeiros séculos de
História da Igreja, ainda havia um debate sobre a partir de qual momento o feto
passava a ter uma alma. Santo Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, embora
considerasse o aborto um pecado, entendia que, se ocorrido nos primeiros
estágios de gravidez, ele não poderia ser considerado um homicídio. Comentando Êxodo
21:22 que, como já consideramos, mostra que o aborto não era considerado pela
Bíblia como um assassinato, Agostinho escreve:
“Pois bem, o fato de o autor
não querer que o nascituro pertencesse ao homicídio prova que ele pensava que
não era o homem que se carregava no ventre da mãe. Aqui costuma-se colocar o
problema da alma, isto é, de que aquilo que não está formado não pode ser
considerado animado e, portanto, não seria homicídio, pois não se pode afirmar isso
de um ser que ainda não tem alma. ... O grande problema da alma não deve ser
resolvido apressadamente com a imprudência de uma sentença incontestável, a lei
não quis que o aborto fosse considerado um homicídio, porque ainda não pode ser
chamada de alma vivente o que está em um corpo que carece de sentidos, se está,
portanto, em uma carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.”
(Agostinho, Questões em Êxodo, Q80)
Desse modo, o aborto nos
estágios iniciais da gravidez era considerado pecado, mas não homicídio, pois o
feto, ainda em formação, não poderia ser considerado uma alma nem um ser dotado
de sentidos. Tomás de Aquino, posteriormente, defenderá que o feto passa a ter
uma alma racional 40 dias depois da concepção para os meninos e 60 dias depois
da concepção para as meninas. Em 847 d.C., no entanto, o Primeiro Concílio de
Mogúncia declarou o aborto como sendo um homicídio: “se é homicida quem
destruiu com aborto o que foi concebido no útero, quanto mais será impossível
desculpar-se de ser homicida aquele que matou uma criancinha que tinha ao menos
um dia?”. A partir da Idade Média, portanto, a Igreja emitiu diferentes
documentos condenando a prática do aborto. A Declaração do Vaticano sobre o
Aborto Provocado de 1974 resume as opiniões da Igreja sobre o aborto na História
cristã:
“Assim: o primeiro Concílio de
Mogúncia, em 847, confirma as penas estabelecidas por Concílios precedentes
contra o aborto; e determina que seja imposta a penitência mais rigorosa às
mulheres «que matarem as suas crianças ou que provocarem a eliminação do fruto
concebido no próprio seio» . O Decreto de Graciano refere estas palavras do
Papa Estêvão V: « É homicida aquele que fizer perecer, mediante o aborto, o que
tinha sido concebido ». Santo Tomás,
Doutor comum da Igreja, ensina que o aborto é um pecado grave contrário à lei
natural. Nos tempos da Renascença, o Papa Sisto V condena o aborto com a maior
severidade. Um século mais tarde, Inocêncio XI reprova as proposições de alguns
canonistas «laxistas», que pretendiam desculpar o aborto provocado antes do
momento em que certos autores fixavam dar-se a animação espiritual do novo ser.
Nos nossos dias, os últimos Pontífices Romanos proclamaram, com a maior
clareza, a mesma doutrina. Assim: Pio XI respondeu explicitamente às mais
graves objecções; Pio XII excluiu claramente todo e qualquer aborto directo, ou
seja, aquele que é intentado como um fim ou como um meio para o fim; João XXIII
recordou o ensinamento dos Padres sobre o carácter sagrado da vida, «a qual,
desde o seu início, exige a acção de Deus criador ». E bem recentemente, ainda,
o II Concílio do Vaticano, presidido pelo Santo Padre Paulo VI, condenou muito
severamente o aborto: « A vida deve ser defendida com extremos cuidados, desde
a concepção: o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis». O mesmo Santo
Padre Paulo VI, ao falar, por diversas vezes, deste assunto, não teve receio de
declarar que a doutrina da Igreja « não mudou; e mais, que ela é imutável»”
Que a Igreja Medieval tenha
passado a condenar o aborto é algo que pode ser explicado pelos fatos de que
gerar filhos era importante para fornecer mão de obra para o trabalho em um
momento em que a taxa de mortalidade infantil era alta, que pestes dizimavam a
população e que a expectativa de vida era baixa. Outra razão está em que a
Igreja via, com base na Bíblia, a maternidade como uma obrigação da mulher, uma
forma de ela se redimir do pecado original. Por fim, em um momento mais tardio,
a Igreja entenderá que o feto é uma alma e que o aborto deve ser equiparado ao
assassinato. Mas, como considerado, nos tempos bíblicos não havia uma
condenação ao aborto e, nos primeiros séculos da História da Igreja, como
ilustrado pelas opiniões de Agostinho e Tomás de Aquino, acreditava-se que nos
primeiros estágios da gravidez o feto não possuía uma alma e que, portanto, o
aborto precoce não era assassinato.
A condenação cristã ao aborto
é claramente hipócrita. A teologia cristã conservadora sofre de uma contradição
enorme ao lidar com o aborto. Seu lema é “aborto é sempre assassinato”, se a
vida de um feto lhe é retirada houve homicídio, não haverá exceções. Que esse
feto seja fruto de um estupro ou que coloque a vida de uma mulher em risco, não
importa, é dever cristão defender incondicionalmente a vida do feto. Mas quando
se trata da vida de uma pessoa adulta, a teologia conservadora não tem coragem
de dizer “Matar uma pessoa adulta é sempre assassinato”. Logo que se diz isso,
o cristão conservador aparece para apresentar exceções, ele diz: “é claro que
se pode matar um adulto como no caso da pena de morte”, “bandido bom é bandido
morto”, “o homicida deve pagar com a própria vida”.
O cristão conservador não demorará para
admitir que matar um adulto não é errado em legítima defesa. Que matar em uma
"guerra justa" é aceito por Deus. Dirá também que se Deus mandar
matar, então é para matar, incluindo bebês inocentes como nos genocídios do
Antigo Testamento. Assim, para a teologia conservadora, a vida do feto tem
valor incondicional, mas a partir do momento que ele nasce, matá-lo nem sempre
é errado. Em todas essas formulações, a moral conservadora cristã postula que a
vida de um feto vale mais que a vida de um humano que já nasceu. Mas na verdade,
o que o Cristianismo postula é que a defesa da vida é interessante quando ela
serve de mecanismo para negar a emancipação da mulher.
II. O PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO
Tendo
considerado a origem da condenação do aborto ao longo da História, surge a
questão se o aborto é eticamente condenável. A resposta a essa questão não é
simples. No entanto, algumas reflexões poderão lançar luz sobre o debate ético.
A grande questão que deve ser levantada é: a partir de qual momento a vida
humana se torna inviolável? Primeiramente, é preciso considerar que mesmo um
óvulo ou um espermatozoide são seres vivos e células especificamente humanas. É
praticamente consenso que óvulos e espermatozoides não têm direito à vida,
portanto, não é suficiente que algo seja uma vida humana para que seja
considerado inviolável.
A
maior parte dos conservadores, no entanto, advoga que a vida humana se torna
inviolável com a união do óvulo com o espermatozoide na concepção, quando ocorre
a formação do zigoto. Todavia, a defesa dessa posição carrega o problema de que
até o décimo quarto dia de gestação, o embrião ainda pode se dividir e formar
gêmeos. Se esse é o caso, suponhamos que no dia 14 o embrião X se divida e forme
o organismos Y e Z. Se desde a fecundação o embrião X já é um “alguém” ou uma “pessoa”
com direito à vida, como pode se dar que essa pessoa X se divida em duas e
forme uma pessoa Y e Z? E depois da divisão, Y e Z são duas pessoas diferentes
de X? E, se são, o que ocorreu com a pessoa X, será que ela morreu para que surgissem as
pessoas Y e Z? Como se vê, não faz sentido considerar o zigoto um organismo individual, muito menos uma pessoa com direito à vida.
Se
queremos, na verdade, descobrir qual o momento a partir do qual um organismo humano
passa a ter direito à vida, é preciso responder, primeiramente, o que nos
define enquanto “alguém” e qual a extensão de período de nosso direito à vida. A
pergunta pelo “alguém” não parece ser corretamente respondida pela mera constatação
da existência de nosso organismo enquanto corpo anatômico. A nossa identidade
no sentido do “alguém” que nós somos só faz sentido quando se considera a
existência de nossa vida mental. Somos mentes corporificadas e é a existência
em nós de uma atividade mental que nos torna seres pessoais.
Para entender melhor o
argumento de que não somos meramente organismos corpóreos podemos recorrer a
uma analogia. Imaginemos que duas pessoas, a pessoa A e a pessoa B, estejam em
um carro. De repente a pessoa A tem seu corpo massacrado no acidente,
conservando-se inteira somente sua cabeça. A pessoa B, por outro lado, tem sua
cabeça destruída, restando-se apenas o seu corpo. Imaginemos que para salvar
pelo menos uma vida, o médico una a cabeça da pessoa A ao corpo da pessoa B.
Entendendo que o centro biológico da consciência emerge do cérebro, ao retomar
a consciência, essa pessoa terá a memória da pessoa A, embora no corpo de B.
Quem é a pessoa que retomou a consciência? Parece ser correto responder que, embora no
corpo de B, a pessoa que temos diante de nós “é” a pessoa A. Isso significa que
aquilo que somos não é definido por uma questão de constituição corporal, nós
não somos meros organismos corporais, antes somos mentes corporificadas, cujo
centro de nossa identidade pessoal está no cérebro.
A segunda questão diz respeito
à extensão de nosso direito à vida. Perguntar por “quando se encerra o nosso
direito à vida?” pode nos guiar uma resposta sobre “quando se inicia nosso
direito à vida?”. Nossa vida termina quando se constata a morte cerebral. Ainda
que o corpo de uma pessoa esteja com seus órgãos funcionando, quando seu
cérebro para de funcionar de forma irreversível, podemos dizer que ela morreu.
É por isso, que, muitos consideram que já é legalmente correto doar os órgãos
de uma pessoa após morte cerebral, ainda que o resto de seu corpo ainda esteja vivo.
Se a vida humana se estende até a morte cerebral, podemos entender que é quando
se inicia a atividade cerebral que temos diante de nós um “alguém” com direito
à vida humana. Cabe, então, perguntar, quando se inicia a nossa vida mental. O professor
Alcino Bonella responde:
“Vamos admitir a hipótese de
que uma existência especificamente humana, de alguém como eu e você, por
exemplo, começa apenas quando o córtex cerebral plenamente formado tem
capacidade de tornar o organismo que o sustenta um ser consciente. Já sabemos
que isso, na melhor evidência disponível, ocorre em torno da vigésima semana de
gestação de um feto humano no útero materno. A partir deste evento é que o cérebro
estará apto a processar ao menos minimamente sensações de dor, e vivenciar os
rudimentos da vida mental propriamente dita. Se fosse verdade que começamos a
existir neste estágio, faria sentido pensar que deixamos de existir, como
indivíduos especificamente humanos, quando nosso córtex cerebral morrer
definitivamente, mesmo que nosso restante organismo biológico continue
momentaneamente (ou artificialmente, com ajuda tecnológica) a funcionar, e bem”
(Quando começa a vida?)
Que o feto não sente dor antes da vigésima semana de gestação é o que defende uma revisão sistemática multidisciplinar de mais de 360 artigos científicos (aqui). Podemos entender, então, que o
direito à vida se estende de quando começa a vida humana mental em sentido estrito (vigésima
semana de gestação) até o fim da vida humana mental (morte cerebral). O que
importa nas discussões sobre direito à vida é, portanto, a vida humana mental,
tanto é que se considera que uma pessoa morreu com a morte cerebral, ou seja,
com o fim da vida mental. Sem vida mental em sentido estrito não há "alguém", não existe
"pessoa". Por isso o aborto antes do início da vida mental não é
matar alguém. Os abortos provocados, em geral, acontecem antes da vigésima semana
de gestação (apenas cerca de 1% dos abortos ocorrem após esse período - WhoSeeks Abortions at or After 20 Weeks?). Podemos resumir os seguintes pontos:
1. Espermatozoide e óvulo já
são vidas humanas
2. O zigoto não é uma vida
humana individual, pois ele ainda pode se dividir formando mais de um
organismo.
3. O embrião só se torna um
organismo individual após 2 semanas de gestação.
4. É na vigésima semana de
gestação que o feto passa a ter vida mental em sentido estrito (no sentido de ser capaz de experienciar minimamentes sensações como dor), se tornando uma pessoa.
A questão do aborto levanta
ainda o problema complexo de que estamos diante de uma situação única: a de uma
vida humana individual dentro do corpo de outra pessoa, ligada a esse corpo
recebendo dele a nutrição e causando modificações intensas nesse corpo. Se deve
colocar aqui em discussão, portanto, um direito para além da discussão sobre o
direito à vida, que vem a ser o direito da mulher sobre o seu próprio corpo. É
verdade que o feto não é uma mera extensão do corpo da mulher, mas o feto está
dentro do corpo da mulher e pertence à mulher o direito de decidir carregar ou
não uma outra vida dentro de seu próprio corpo. É somente à mulher que pertence
o direito de decidir sobre o que se desenrola no espaço interior de seu corpo.
Para destacar o direito da mulher sobre o próprio corpo, a feminista Judith Thompson usa a
seguinte analogia:
“Você acorda de manhã e se vê
unida, costa com costa, a um famoso violinista inconsciente. Ele tem uma grave
doença nos rins, e a Sociedade dos Amantes da Música descobriu que só você
tinha o tipo sanguíneo que podia salvá-lo. Eles sequestram você e o sistema
circulatório do violinista foi ligado ao seu. O diretor do hospital lhe diz:
'Jamais teríamos permitido que a Sociedade fizesse isso, mas, agora que está
feito, não podemos desligar o violinista de você porque isso significaria
matá-lo. Mas não se preocupe, o processo vai durar apenas nove meses, depois
você estará livre para ir embora.'Você é moralmente obrigada a aceitar essa situação? Não há dúvida de que seria muito bacana de sua parte, uma grande bondade. Mas você tem de assentir?” (Uma Defesa do Aborto)
A resposta evidentemente é não. Não
se pode ignorar o fato de que o corpo que abriga uma outra vida é o corpo da mulher
e, portanto, ainda que uma pessoa considerasse o aborto imoral, não poderia
ignorar essa constatação. A única pessoa a quem cabe a decisão de abrigar no
seu corpo uma outra vida é a mulher, a quem esse corpo pertence. A analogia do
violinista, é claro, é uma metáfora, e como tal ela possui limitações e pode
não se aplicar adequadamente a todo caso em que ocorre um aborto, mas ela fornece
intuições importantes para não ignorar o fato de que o feto se encontra dentro
do corpo da mulher e que isso suscita a discussão a respeito do direito da
mulher em escolher ou não continuar abrigando uma vida no interior de seu próprio
corpo.
III. ABORTO E DISPOSITIVO MATERNO
Uma
última discussão importante em relação ao aborto é sua relação com questões
sociais. O feminismo, de diferentes vertentes, tem chamado nossa atenção para
como o patriarcado oprime as mulheres. Os homens, em geral, se veem livres para
fazer sexo com diversas mulheres, as engravidarem e não se responsabilizarem
pelo filho. Mas mesmo pais que em alguma medida reconhecem os filhos, em geral
entendem que as tarefas de cuidado são obrigações das mulheres. Pais que geram filhos
podem ter poucos prejuízos para sua vida em geral, o mesmo não ocorre com as
mulheres. Dificilmente um homem precisa desistir do emprego, da carreira ou de
planos para cuidar de um filho, o mesmo não ocorre com as mulheres que, muitas
vezes, não podem encontrar meios de conciliar maternidade e carreira. Essas
questões sociais não podem ser esquecidas quando se discute a questão do
aborto.
A
autora feminista Valeska Zanello, no livro Saúde mental, Gênero e Dispositivos,
chama de Dispositivo Materno, a construção da ideia de que ser mãe e cuidar é
algo natural do instinto da mulher. A maternidade é, assim, um trabalho
não-remunerado cuja responsabilidade recai toda sobre a mulher. Além disso,
mesmo que uma mulher não tenha filhos, ela será demandada a ser cuidadora, como
cuidar de idosos ou adentrar em empregos voltados para o cuidado (enfermeira,
professora infantil, empregada doméstica, babá, etc.). Essa exigência é
historicamente construída, pois há culturas e momentos históricos, em que o
cuidado do filho pertence à toda comunidade, em que gestar e cuidar não estão
necessariamente vinculados, que não existe a ideia de que o bebê merece uma
maternagem especial ou que o cuidado materno era realizado pelas amas de leite
e não pela mãe biológica.
É, em
grande medida, devido ao dispositivo materno, que o aborto aparece aos olhos da
sociedade como algo assustador e é, pela mesma razão, que o fato de que pais abandonam
seus filhos não recebe o mesmo rechaço. É que, para o patriarcado, que a mulher
não seja mãe significa que ela está indo contra a natureza, mas o que se ignora
é que, aquilo que se chama natureza, é, na verdade, a naturalização de uma exigência
social historicamente determinada. Aos olhos da visão cristã, é ainda uma falta
grave que uma mulher decida não ser mãe porque assim ela deixa de cumprir
aquilo que a pode redimir do pecado original de Eva. As mulheres devem, para o
Cristianismo, seguir o ideal da Virgem Maria que, aceitando de bom grado a
gravidez, trouxe a reversão da Queda.
O
dispositivo materno impõe, ainda, um falso ideal de maternidade. Retrata-se a maternagem
como uma tarefa feliz na qual a mulher encontra sua realização. Há, pois, uma
crença social de que mulheres nasceram para ser mães e que é sendo mães que elas
irão ser felizes, completas e realizadas, cumprindo sua vocação no mundo. A
própria psicanálise contribuiu por um tempo com essa noção ao pensar na mulher
como um ser sem falo e, portanto, incompleto que só se completa ao ter um bebê que
passará a ocupar o espaço fálico simbólico. O problema é que a maternidade não
é uma tarefa fácil, mas sim uma árdua tarefa envolvendo sofrimento, dificuldades, lutas, frustrações,
medos e culpas. Muitas vezes esses sofrimentos são patologizados como ocorre
sob o diagnóstico da depressão pós-parto. As mães, ao verem que não cumprem com
o ideal imposto pela maternidade compulsória, se culpam por se culpar, se
culpam por sofrer, se culpam por não cumprirem o ideal da mãe suficientemente
boa, um ideal que, a bem da verdade, é inatingível.
Há,
ainda, o mito do amor materno, se é natural da mulher o cuidar, uma mãe que não
ama seu filho é alguém que falhou em cumprir sua vocação dada pela natureza.
Amar se torna uma tarefa sagrada incumbida por Deus por meio da qual a mulher
realiza seu instinto mais próprio. Assim, rejeitar um filho é visto como uma
falta grave. Mas não só isso, sentir raiva do bebê ou da maternidade se torna
reprovávell aos olhos da sociedade:
“Em geral, o que se percebe é
que a pessoa da mulher ficou cada vez mais subsumida nas funções maternas e domésticas
(de sua própria casa e/ou na casa de outras mulheres). A mensagem propalada é
de que uma boa mãe deveria se apagar em favor de suas responsabilidades para
com seus filhos, com a promessa de felicidade. A partir de então, não amar os
filhos tornou-se um crime, uma aberração, a qual deveria ser evitada, ou sendo
impossível, disfarçada. Por outro lado, a mãe foi cada vez mais sacralizada:
criou-se uma associação de um novo aspecto místico à maternidade, a de santa.”
(Valeska Zanello - Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para
a Psicologia. In: CFP - ABORTO E (NÃO) DESEJO DE MATERNIDADE(S))
A maternidade compulsória
cumpre um papel na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista.
As mulheres precisam exercer o cuidado tanto do filho como do marido para
garantir que o homem se beneficiei de privilégios que o permitam se realizar no
mundo do trabalho: “Mulheres sustentam homens ao prover cuidado infantil, apoio
emocional, refeições e gerenciamento da casa GRATUITAMENTE, para que esses
homens possam ter tempo e energia para investir em suas carreiras” (@thejuproject). O aborto, portanto, apresenta-se como uma ameaça ao patriarcado e
ao capitalismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
condenação do aborto custa vida de mulheres, principalmente negras, que morrem devido
à clandestinidade: “Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma
estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de
mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de
baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e sem companheiro” (As maiores vítimas do aborto no Brasil). Isso mostra a urgência do debate ético e social em relação
ao aborto na medida em que ele se apresenta como uma questão de saúde pública. É
preciso, pois, salientar a importância de lutar pelo direito da mulher em escolher
levar ou não adiante uma gravidez tendo meios garantidos pelo Estado de
realizar isso de forma segura.
Vimos que, a condenação do
aborto se construiu no Ocidente a partir de uma imposição da Igreja Cristã ao
longo da História a partir de uma compreensão de que a maternidade é o meio
pelo qual a mulher se redime do pecado original. Vimos que, do ponto de vista
ético, o direito à vida está relacionado a presença da atividade do córtex
cerebral por volta da vigésima semana de gestação, sendo que antes desse
momento o feto não pode ser considerado uma pessoa, além de ser incapaz de experienciar
dor. Tratamos ainda da questão do direito da mulher de escolher ou não abrigar
dentro do próprio corpo uma vida. Por fim, discutimos como o dispositivo
materno está por trás da condenação social ao aborto na medida que impõe às
mulheres a maternidade como algo obrigatório e natural. Finalizo com a
declaração de Simone de Beauvoir, que escreveu: “A verdade é que a condenação
do aborto é parte da recusa a tudo o que pode libertar a mulher.” (Simone de
Beauvoir. Segundo Sexo II).
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