A PROPOSTA DE UMA FENOMENOLOGIA CRÍTICA: DIÁLOGOS ENTRE FENOMENOLOGIA E TEORIA CRÍTICA
RESUMO:
A
fenomenologia crítica consiste na proposta teórico-prática de unir o elemento
formal-descritivo da fenomenologia clássica com o elemento dialético-social da
Teoria Crítica (e das “teorias críticas”). Compreende-se que essa síntese pode
propiciar direcionamentos potentes para abrir novas possibilidades de reflexão
e ação no mundo. O objetivo desta pesquisa consiste, pois, em fornecer um
diálogo sintético entre a Teoria Crítica e a fenomenologia clássica, de modo a
reunir elementos para a proposição concreta de uma fenomenologia crítica. Verifica-se que a Teoria Crítica se construiu como uma proposta
emancipadora que rompeu com o caráter ideológico da teoria tradicional e que a
fenomenologia clássica fornece recursos metodológicos para desconstruir interpretações
sociais sedimentadas e promover um retorno à realidade concreta. Concluiu-se, a
partir disso, que a síntese entre as duas abordagens abre espaço para o projeto
de uma fenomenologia crítica, capaz de refletir sobre temas sociais, como o
patriarcado, a heteronormatividade, a branquitude, entre outros questões.
Palavras chaves: Teoria Crítica; Fenomenologia Clássica; Fenomenologia Crítica.
I. INTRODUÇÃO
A fenomenologia crítica é um projeto recente proposto
por alguns autores que visa unir o elemento crítico da fenomenologia clássica e
o elemento dialético das teorias críticas. Trata-se de uma proposta que tem
como finalidade pensar uma ação transformadora e emancipatória tomando como
base conceitos desenvolvidos pela escola fenomenológica. No entanto, pouco há
em língua portuguesa a respeito dessa proposta, de modo que este artigo
pretende suprir esta falta. O objetivo desta pesquisa é fornecer um diálogo sintético
entre a Teoria Crítica (e as “teorias críticas”) e a Fenomenologia clássica, de
modo a reunir elementos para a proposição concreta de uma fenomenologia
crítica.
Para tal, em um primeiro momento
será feita uma apresentação da abordagem teórico-crítica, a partir de alguns
filósofos da Escola de Frankfurt, tomando como fio condutor as considerações
feitas por Horkheimer (1982) a respeito da contraposição entre a Teoria
Tradicional e a Teoria Crítica. Serão exploradas, no entanto, contribuições feitas
por outros filósofos frankfurtianos. Não pertence ao escopo deste artigo
discutir as diferentes concepções desenvolvidas pelos distintos teóricos da
Escola de Frankfurt. A discussão sobre as divergências filosóficas entre os
pensadores da Teoria Crítica poderia desviar o foco deste trabalho, de modo que
se optou por uma apresentação integrada da abordagem teórico-crítica a partir
de suas potencialidades na construção de uma forma de ver o mundo marcada pela
criticidade. Nessa sessão, também será realizada alguns apontamentos a respeito
das teorias críticas em sentido mais amplo, a partir do um entendimento mais
ampliado em relação à aplicação do elemento crítico por outras escolas de
pensamento.
Em um segundo momento, serão
apresentados algumas noções e elementos metodológicos da fenomenologia
clássica, especialmente a partir de Edmund Husserl. No entanto, essa
apresentação será feita em diálogo com outros fenomenólogos que ampliaram
conceitos husserlianos, bem como com teóricos que aplicaram noções da fenomenologia
para refletir criticamente a respeito de questões sociais. Preliminarmente,
podemos definir a fenomenologia como sendo a ciência dos fenômenos, cuja tarefa
primordial consiste em descrever aquilo que se mostra tal como se mostra a
partir de si mesmo, o que é possibilitado por uma suspensão de nossas
interpretações sedimentadas a respeito da realidade (HUSSERL, 2000).
Por fim, será discutida a proposta
prática de uma fenomenologia crítica, especialmente a partir do que já foi
escrito em relação ao tema em língua inglesa. Desse modo, buscar-se-á lançar as
bases para que sejam desenvolvidas aqui no Brasil ou em língua portuguesa,
formas de aplicar o método fenomenológico a fim de refletir criticamente a
respeito dos fenômenos sociais de nossa realidade. Será considerado, portanto,
como a fenomenologia crítica pode sintetizar o elemento descritivo, advindo da
fenomenologia clássica com o elemento dialético, oriundo da abordagem
teórico-crítica.
II.
A ABORDAGEM TEÓRICO-CRÍTICA
Há diferentes maneiras pelas quais se pode definir a
Teoria Crítica, aqui considerarei a Teoria Crítica em sentido estrito, com
letras maiúsculas, como designando o pensamento de diferentes teóricos e
filósofos ligados à Escola de Frankfurt que se dedicaram a pensar criticamente
as questões sociais, divergindo do marxismo tradicional e com letras minúsculas
para se referir a um sentido amplo que inclui abordagens de crítica social em
geral. O objetivo dos pensadores de Frankfurt consistiu em realizar uma crítica
transformadora dos condicionantes que oprimem os seres humanos. Tal crítica
seria capaz de propiciar as bases para a mudança social, possibilitando a
diminuição da dominação social opressiva e a construção de uma sociedade mais
emancipadora. Trata-se de uma abordagem filosófica ampla que abrange diversas
áreas, como a ética, a política, a história, a antropologia e outros campos de
investigação (BOHMAN, 2005).
A abordagem teórico-crítico foi ainda uma forma de
lidar com o fracasso dos regimes socialistas autoritários do século XX. As políticas "totalitárias" da União Soviética (ARENDT, 1991) e as repressões autoritárias de
governos comunistas levantaram a necessidade de situar o pensamento marxista em
uma nova ótica. É preciso, todavia, citar com cuidado a crítica arendtiana ao
totalitarismo. Uso esse conceito com cautela, pois, por vezes, ele parece
equiparar o stalinismo ao nazismo hitlerista. O stalinismo deve ser condenado
veementemente, mas entendendo que ele é um fenômeno distinto do hiltlerismo.
Ademais, o stalinismo não deve ser confundindo com o comunismo, o stalinismo é
comunista, mas o comunismo não é o stalinismo. Comunistas desde cedo criticaram
o stalinismo. Entendo que, os comunistas, hoje, devem olhar para o stalinismo e
fazer uma autocrítica, no entanto, pontuo a importância de uma perspectiva
revolucionária que tenha em vista a construção de uma sociedade que supere o
atual modo de produção e reprodução da vida a partir de uma outra forma de
organização social no qual poder seja do povo e para o povo.
De todo modo, ante as políticas socialistas que
atentaram contra as liberdades democráticas e mantiveram o aparato tecnológico
repressor do Estado (MARCUSE, 1982), era preciso realizar uma renovação capaz
de propiciar uma perspectiva verdadeiramente emancipatória. Essa renovação teórica exigiu a construção de
uma compreensão dos movimentos de emancipação, bem como o trabalho de fornecer
um diagnóstico a respeito do cenário sociopolítico ocidental. Tornou-se
perceptível que a emancipação genuína e um diagnóstico preciso passava pelo
entendimento de que a crítica social não podia mais se reduzir ao modelo do
proletariado como classe revolucionária (NOBRE, 2012).
É importante pontuar que embora a Teoria Crítica em
sentido estrito se refira especialmente aos estudos da Escola de Frankfurt,
tendo seu início em Horkheimer e Adorno e se estendendo até Marcuse, podemos
chamar de “teoria crítica”, em um sentido mais amplo, qualquer abordagem
filosófica que objetive uma crítica social emancipatória, tais como os estudos
feministas, as discussões sobre questões raciais, as teorias sobre gênero e
sexualidade, entre outras (BOHMAN, 2005). Por exemplo, o pensamento político
feminista, na medida em que tece uma crítica ao patriarcado e busca a
emancipação das mulheres, pode ser entendido como uma “teoria crítica
feminista”. Isso se dá porque a busca do feminismo em mapear a realidade a fim
de estabelecer um diagnóstico das situações de opressão está em conformidade
com o espírito da Teoria Crítica. A Teoria Crítica, portanto, pode ser pensada
a partir de focos históricos diversos, o que possibilita sínteses importantes
entre os filósofos da Escola de Frankfurt com abordagens socio-críticas
presentes em outras tradições, tais como a fenomenologia e o pós-estruturalismo
(ASSIS, RODRIGUES & ANDRADE, 2020).
Horkheimer (1972) fez uma distinção entre teoria
tradicional e Teoria Crítica, examinando as limitações do pensamento cartesiano
e lançando as bases para uma forma de pensar que pudesse ser marcada pela
criticidade em relação à ordem social capitalista. Em primeiro lugar, ele
questiona o que vem a ser “teoria”. De acordo com os pensadores tradicionais, a
teoria seria um conjunto de proposições conectadas entre si por meio de
derivações lógicas entre premissas básicas e conclusões, em que a verdade
estaria numa concordância entre as proposições teóricas e a realidade a qual se
referem. Uma teoria, entretanto, teria sempre um caráter contingente, visto que
se apresentaria como uma hipótese passível de ser revisada caso os fatos
advindos da experiência com a realidade entrassem em contradição com suas
premissas.
Essa maneira de pensar a teoria enquanto um sistema de
premissas derivadas logicamente uma das outras, toma como modelo a matemática,
em que se deduz certos enunciados a partir de axiomas iniciais. Assim, a
construção de uma teoria deveria estabelecer, a partir de premissas de
observação, certos pressupostos básicos a partir dos quais seriam derivadas
conclusões em conformidade com a realidade, sendo possível analisar a validade
de tais teorias pelo cálculo lógico-dedutivo. Mas será que todos os fenômenos
podem ser captados pelo pensamento analítico? Poderá a cadeia sistemática de
premissas configurar todo o conhecimento humano de forma integral e abrangente?
Ou ainda, será que o conhecimento a respeito de fenômenos sociais e políticos
pode ser enquadrado no modelo de axiomas e derivações importado da matemática?
É preciso, pois, colocar em questão se a construção matemática do conhecimento
pode servir de paradigma adequado para as ciências humanas e sociais
(HORKHEIMER, 1972).
Para se adequar, entretanto, às exigências do
cientificismo, as ciências humanas e sociais tomaram como base o mesmo modelo
das ciências naturais, o que conduziu a uma exclusão da subjetividade, que não
se deixa apreender completamente pelo objetivismo científico. A partir do
paradigma das ciências naturais, muitas pesquisas sobre fenômenos sociais se
concentraram em dados estatísticos e tentativas de estabelecer relações
explicativas de causa e efeito. Assim, as pesquisas nas áreas de humanas foram
orientadas, na perspectiva tradicional, a partir das matrizes cientificistas
que situaram os fenômenos sociológicos como dados naturais. Exemplo disso é a
Sociologia Positiva, que propôs uma Física Social que buscou uma interpretação
da dinâmica da sociedade a partir do modelo das ciências exatas (GERMANO,
2011).
A imposição de cima para baixo do método das ciências
exatas e naturais para as ciências humanas ou do espírito é uma exigência
oriunda da concepção de que são os métodos matemáticos que conferem o caráter
de cientificidade a uma teoria. Trata-se do modo como as ciências sociais
poderiam existir segundo os preceitos da teoria tradicional. Horkheimer (1972)
pontua que este paradigma científico está em conformidade com o tecnicismo da
era burguesa. O requerimento de que se construa o conhecimento a respeito dos
fatos sociais a partir de uma ordem explicativa que se estrutura como uma
cadeia de premissas lógico-matemáticas leva a um deslocamento da teoria em
relação à realidade. Ao invés de emergir das relações materiais concretas dos
sujeitos, as teorias acabam se articulando em um conjunto de premissas
supra-históricas, que se substantivam enquanto um mundo de idealidades.
A teoria tradicional se enquadra naquilo que o
marxismo denomina como ideologia. Se considerarmos, por exemplo, o idealismo
alemão representado por nomes como Georg Hegel, Max Stirner e Ludwig Feuerbach
que, a partir de conceitos como “Espírito Absoluto”, “Consciência”, “o Único”,
criaram representações autocentradas isoladas do mundo concreto da experiência.
O pressuposto por trás do pensamento ideológico está em pensar a consciência, a
moral, a religião e a metafísica como anteriores à história real e material. O
marxismo, em contraposição a isso, concebe as ideias e a consciência como
determinados pela vida concreta, e não o contrário (MARX & ENGELS, 2007).
De modo similar, se pode dizer que a ciência positiva, ao aplicar o modelo
matemático, cria um mundo de idealidades abstraído do mundo concreto da
existência, apresentando-se, pois, como uma ideologia (HORKHEIMER, 1972).
Enquanto ideologia, a teoria tradicional serve aos
propósitos de alienação e criação de uma falsa consciência. Podemos, assim,
compreender o pensamento ideológico como aquele que é marcado por um
distanciamento da realidade concreta, o que produz uma ilusão que tem um papel
central na distorção e coisificação do conhecimento. Na medida em que está em
conformidade com a idade burguesa, a ideologia opera no sentido da legitimação
de relações de opressão e exploração, sendo um instrumento utilizado pela
classe dominante para produzir um conforto psicológico que impede a classe
dominada de tomar consciência de suas condições materiais e da necessidade da
luta pela emancipação dessas condições (BALDI, 2019).
A partir disso, podemos entender que
a teoria tradicional enquanto ideologia não pode ser pensada como separada das
condições sociais concretas. O modo como as ciências se estruturaram e
construíram seus métodos, não pode ser pensado em separado do modo de produção
e reprodução da vida na sociedade burguesa. O papel do cientista se insere
dentro da divisão social do trabalho, sendo sua função classificar os fatos em
uma cadeia de conceitos de modo a propiciar um instrumento de domínio para
manejo da natureza física e controle social. Desse modo, o trabalho teórico não
deixa de cumprir um papel dentro do sistema produtivo da sociedade. Portanto, o
isolamento da atividade científica da estrutura econômica do capitalismo é uma
construção ideológica que atende aos interesses da burguesia (HORKHEIMER,
1972).
A Teoria Crítica, por outro lado, se
opõe ao formalismo da teoria tradicional e propõe uma compreensão mais
abrangente e emancipatória. Do ponto de vista crítico, a realidade precisa ser
compreendida levando em conta as contradições da práxis social, indo
além de um mero trabalho descritivo na medida em que elabora caminhos para a
libertação humana e a superação das opressões. Trata-se, pois, não somente de
um conjunto conceitual, mas de um comportamento crítico que problematiza o
sistema econômico vigente. O conhecimento deve, portanto, ser pensando em conjunto
com a ação. A Teoria Crítica postula ainda a necessidade de considerar que as
experiências humanas sempre se dão dentro de um contexto histórico, em relação
ao qual é preciso agir visando a transformação social (CARNAÚBA, 2010).
O teórico social, diferente do
tradicional, não compreende a realidade a partir de uma suposta externalidade
que posicionaria o real como algo objetivo transcendendo o sujeito, antes
realiza uma crítica imanente a partir do entendimento de que o investigador é
parte da realidade social observada. Desse modo, a Teoria Crítica é moldada de
certa forma pela própria realidade que ela encara, constituindo-se por meio dos
condicionantes históricos que perpassem a vida social. No entanto, embora se forme dentro dos
processos sociais da realidade, a Teoria Crítica busca trazer à luz elementos
que possibilitem a tarefa de emancipação e de superação da concretude fática da
estrutura do real (BASSANI, 2014).
O objetivo prático da Teoria Crítica
em seu começo seria o projeto de uma democracia real, em contraste com as
democracias liberais. A potencialidade de uma emancipação humana
realizar-se-ia, destarte, na construção de uma sociedade genuinamente
democrática (BOHMAN, 2005). O pensamento crítico seria capaz de fornecer aos
sujeitos recursos para uma compreensão reflexiva marcada pela criticidade, o
que os tornaria agentes capazes de transformar a si mesmos e a realidade social
que os cerca. O modo de produção capitalista é considerado, dentro dessa visão,
como contrário à racionalidade emancipadora, na medida em que incorpora uma
tecnização da razão (JÚNIOR & JÚNIOR, 2012). Ademais, há um
desenvolvimento, na Escola de Frankfurt de uma avaliação dos limites da
democracia, levando em conta o perigo das tendências antidemocráticas, como a
ameaça do fascismo (BOHMAN, 2005).
De acordo com Theodor Adorno,
aqueles que defendem concepções contrárias aos ideais de emancipação em um
regime democrático manifestam um pensamento autoritário, de modo que seria
possível identificar em um sujeito predisposições psicossociais para o
fascismo. Seria possível, assim, estabelecer uma correlação entre certos traços
de personalidade e a expressão de ideias preconceituosas. Destarte, atributos
de caráter poderiam explicar por que certas pessoas aderem a crenças autoritárias
(ADORNO, et al., 1950). Além disso, organizações hierárquicas da sociedade,
tais como as igrejas e o exército, cumpririam o papel de inculcar ideias
autoritárias por meio da manipulação de massas. As democracias atuais fomentam
em seu seio essas tendências antidemocráticas ao permitir a atuação da cultura
de massas em seu meio. Por isso, a construção de uma sociedade genuinamente
democrática passaria pela valorização da autonomia e liberdade dos sujeitos
através de um projeto verdadeiramente emancipatório (HOLANDA, 2020).
As críticas da Escola de Frankfurt,
entretanto, não se limitam ao fascismo, voltando-se também contra o liberalismo
e à razão iluminista (esclarecida), embora a ideologia fascista seja produto de
ambos. Adorno & Horkheimer (1985) pontuam que a racionalidade presente no
Esclarecimento se revela instrumental, dominadora, calculista e controladora,
encontrando-se presente nas instituições liberais, na medida em que elas
atendem aos interesses de uma sociedade administrada. O liberalismo conduz ao
fascismo, visto que a razão instrumental solapa a cooperação social. O Estado
fascista seria, assim, levado a cabo por um sistema tecnicista dirigido por um
pensamento calculador fruto da razão instrumental exaltada pelo Esclarecimento
(BOHMAN, 2005).
A razão instrumental ocupa-se
meramente com os meios, sem preocupar-se de fato com os fins em si. Tal
racionalidade formalista se manifesta no domínio da natureza, no qual prevalece
a calculabilidade e a utilidade. Constrói-se a partir disso uma imagem
científica do mundo, cujo objetivo é estabelecer técnicas de controle que
buscam ajustar a realidade ao modelo instrumental de mundo. Em certo sentido, a
razão instrumental coloca-se como razão subjetiva, pois visa a autopreservação
do sujeito (HORKHEIMER, 2002). A preservação de si mesmo se apresenta, assim,
como único fim da subjetividade. Na sociedade liberal, o impulso de satisfazer
aos próprios interesses torna-se o pivô que organiza as relações no arranjo
social capitalista (BERENDZEN, 2017).
O esclarecimento, pensado no sentido
dessa racionalidade fria e calculista, converte-se em irracionalismo e
mitologia, conduzindo a uma forma de barbárie. Trata-se de uma regressão
civilizatória ante o fracasso da razão instrumental em cumprir a promessa do
progresso e do estabelecimento de uma sociedade baseada na liberdade. Vivemos,
portanto, uma espécie de crise da humanidade marcada pela degeneração da
cultura. A busca pelo domínio da natureza se transforma, então, em uma
fragmentação do real em que a razão se volta contra si mesma. A racionalidade
técnica promove, assim, o mito da ciência por meio da instauração de uma lógica
utilitária que tudo submete ao autoritarismo do pensamento calculador (BARBOSA,
2019).
Podemos compreender, assim, a Teoria Crítica
como uma resposta à crise, não só do marxismo tradicional, mas também da razão
esclarecida, do liberalismo e do pensamento técnico-científico. Uma situação de
crise é um momento crítico que requer uma reposta crítica. Requer-se não só uma
resposta teórica, mas prática. Ou seja, é necessário não só uma estrutura
interpretativa, mas uma “práxis”. Temos, assim, uma teoria da práxis, na qual a
interpretação e a ação social encontram-se correlacionadas de forma
indissolúvel. É preciso compreender que os fenômenos da realidade não são
abstrações elencadas em um encadeamento formal ou em uma lógica instrumental,
mas fenômenos reais, de sujeitos determinados em situações concretas de
existência. Podemos entender a práxis, pois, como sendo um conhecimento engajado
(BARBOSA, 2010).
Essa crítica social precisa ser
ainda mais estrutural do que aquela feita pelo marxismo tradicional. É verdade
que o marxismo clássico promoveu a ideia de uma revolução radical capaz de
subverter toda a ordem social vigente, libertando o proletariado dos grilhões
impostos pela opressão burguesa (MARX & ENGELS, 1848/2009). Todavia, as
experiências socialistas do século XX, embora tenham levado a classe
trabalhadora ao poder, manteve o aparato tecnológico repressivo do Estado, levando
a regimes de caráter totalitário, como foi o caso do stalinismo na União
Soviética (ARENDT, 1991). Marcuse (1982) pontua que o grande problema da teoria
marxista tradicional está em que ela concebeu a mudança do capitalismo para o
socialismo como sendo apenas uma revolução política. As revoluções socialistas
do século XX subverteram a estrutura política da sociedade, submetendo os meios
de produção à socialização, no entanto, conservando o aparato tecnológico, de
modo que a racionalidade técnico-instrumental foi mantida.
Não basta somente uma mudança da
classe que detém o poder do Estado e dos meios de produção, se a lógica que
governa a sociedade permanecer a mesma. Não é suficiente que as empresas agora
não mais pertençam à burguesia, mas ao proletariado, se houve apenas uma
mudança de donos, tendo sido conservado a mesma racionalidade calculadora e
autoritária que existia no modo de produção capitalista. A racionalidade
técnica é, portanto, um fator de conservação e de resistência à transformação,
mesmo em experiências socialistas. Outras exemplo de transformação, mas que
conserva a razão mecânica, é o Estado de Bem-Estar Social, que é uma
alternativa oferecida pela própria racionalidade tecnológica. Tais mudanças
são, portanto, insuficientes (MARCUSE, 1982).
A própria Revolução Sexual e a
permissividade por ela trazida pode conservar a lógica tecnológica e promover
uma mudança que não seja genuinamente radical. Por isso, Marcuse (1982) fala de
uma dessublimação repressiva. Enquanto a sublimação, no sentido freudiano do
termo, se refere à aplicação da energia sexual libidinosa em atividades
não-sexuais, como o trabalho, o esporte e a arte (FREUD, 1994), a dessublimação
seria o oposto, consistindo no retorno da energia libidinosa à sua forma
sexual, possibilitada pela liberalização sexual. Contudo, mesmo a
permissividade sexual pode ser utilizada como um instrumento que produz
conformismo, a partir de uma falsa satisfação de impulsos que poderiam ser
direcionados a uma ação transformadora. Portanto, a liberalização sexual não é
garantia de que as estruturas tecnológicas da sociedade foram subvertidas
(MARCUSE, 1982).
Nem todo teórico da Escola de
Frankfurt acreditava numa mudança social radical como o fez Marcuse. Ele,
entretanto, nos ajuda a refletir em como críticas sociais que não tocam em
estruturas básicas da sociedade, são insuficientes. Podemos pensar, por
exemplo, no uso que o Capitalismo faz de pautas identitárias e progressistas,
fazendo crer que a transformação social pode existir sem abalar a estrutura
econômica da sociedade. Têm-se hoje fenômenos como o feminismo e o antirracismo
liberais, campanhas realizadas por grandes empresas a favor da causa LGBTQIA+ e
políticas sociais que não rompem com a economia neoliberal (SENA & GUSMAN,
2020). Seria preciso pensar, pois, em uma criticidade radical, que leve em
conta as novas pautas sociais (feminismo, antirracismo, luta LGBTQIA+, etc.)
compreendendo que a superação dessas opressões passa por uma subversão de todo
o aparato não só político, mas também tecnológico da sociedade. Somente uma
profunda revolução, e não meras reformas sociais, podem nos conduzir a uma
verdadeira emancipação (SOUZA & DOMINGUES, 2012).
Assim, indo além do sentido estrito
de Teoria Crítica como se referindo aos pensadores da Escola de Frankfurt,
podemos falar de teorias críticas no plural, abrangendo todas as discussões que
pretendem uma emancipação humana das situações de opressão, considerando
interseccionalidades e peculiaridades de pautas sociais importantes. É preciso,
pois, questionar toda estrutura e aparato social que produz opressão, tais como
o patriarcado, a branquitude, a ordem heterossexual compulsória, a gordofobia,
a psicofobia, a transfobia e, assim, por diante. Nesse sentido mais amplo de
teorias críticas, contribuições de diferentes correntes epistemológicas e de
tradições filosóficas são bem-vindas. Parece-me possível, pois, não só beber da
fonte da Escola de Frankfurt, mas também de outras escolas, como a
fenomenologia, ainda que os pensadores da Teoria Crítica tenham lançado
críticas importantes à fenomenologia clássica. Para estabelecer esse diálogo
entre fenomenologia e teorias críticas, será preciso apresentar primeiramente o
método fenomenológico a fim de considerar em seguida a proposta prática de uma
fenomenologia crítica.
III.
A FENOMENOLOGIA CLÁSSICA: CONCEITOS E MÉTODO
Podemos
denominar como fenomenologia clássica aquela representada pelos filósofos
tradicionais da escola fenomenológica, tais como Edmund Husserl, Martin
Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, dentre outros. A apresentação do método
fenomenológico será feita especialmente a partir de conceitos husserlianos,
entretanto, na medida do possível será considerado a ampliação desses conceitos
por outros fenomenólogos, bem como será pontuado casos em que esses conceitos
foram empregados por outros autores, não necessariamente vinculados à escola
fenomenológica, a fim de realizar alguma crítica social.
Assim como a Teoria Crítica se apresenta como
uma resposta à crise da razão instrumental, a fenomenologia surgiu como uma
resposta à crise do pensamento técnico-científico. Edmund Husserl (2012), o pai
da fenomenologia, diagnosticou uma profunda crise nas ciências europeias,
advinda de uma profunda descrença na capacidade da racionalidade humana em
fornecer um sentido à existência. Isso se deu porque as ciências nada tinham a
dizer ao sujeito concreto, estando deslocada do mundo prático da vida
cotidiana. É na busca de um método que pudesse superar essa crise da
cientificidade, que o filósofo alemão propôs o método fenomenológico.
A
crise das ciências europeias significa que todo o modo pelo qual a ciência
moderna definiu sua tarefa, seu objeto e seu método, tornou-se questionável. Se
traçarmos o desenvolvimento histórico do pensamento europeu, constataremos que
com o Renascimento, houve uma mudança profunda na concepção ocidental de mundo,
visto que a Europa se voltou contra o antigo modo de ser medieval pautado na
autoridade da Igreja Romana para um novo modo de existência agora orientado
pela racionalidade. Essa racionalidade teve seu esplendor com o Iluminismo,
marcado pela crença entusiasmada da filosofia moderna capaz de construir um
conhecimento universal fundamentado nos princípios apriorísticos da razão pura.
No entanto, as guerras mundiais e a emergência dos regimes totalitários do
século XX fez com que todo esse entusiasmo se desmoronasse. O ser humano perdeu
a crença na razão e isso significa que ele perdeu a crença em si mesmo, em sua
própria capacidade racional. Assim, o propósito originário da filosofia em sua
exaltação da racionalidade humana se perdeu (HUSSERL, 2012).
A
genealogia da crise da cientificidade moderna remontaria, de acordo com o
fenomenólogo, ao pensamento galileano que estabeleceu o modelo geométrico como
o fundamento para uma compreensão racional da realidade. Estabeleceu-se, assim,
a ideia de que a natureza seria matematizável, e que a verdadeira essência do
mundo estaria, não nas propriedades sensitivas, mas na extensão capaz de ser
medida segundo noções de altura, largura e profundidade. A natureza foi então
concebida como um sistema fechado de causalidade, no qual os eventos se dão
segundo conexões que obedecem a uma lógica mecanicista (HUSSERL, 2012).
Ampliando
as considerações de Husserl, o fenomenólogo francês Michel Henry (2012)
identificou essa crise como sendo uma barbárie. A ciência, em sua objetividade
fisicalista, baniu a subjetividade e com isso expulsou a própria vida. A
civilização humana é uma realização da vida subjetiva em diferentes modalidades,
como a arte, a religião e a ética, contudo, a ciência, ao banir a
subjetividade, eliminou a própria condição de possibilidade da cultura. Assim,
a ciência significa uma degenerescência da civilização humana. A barbárie é,
portanto, a degeneração da cultura. Na História, muitas nações e civilizações passaram.
Mas, na atualidade, a barbárie parece ser global.
Especialmente na nossa
cultura, a barbárie anda lado a lado com o progresso tecnológico e científico. Pela
primeira vez na história da humanidade, o conhecimento e a cultura encontram-se
em divergência. A cultura se degenera ao mesmo tempo em que a ciência e a
tecnologia avançam. Por isso, cultura e ciência encontram-se, hoje, em
oposição. A ciência substitui o mundo da vida, a realidade fática e concreta,
por um mundo de idealidades abstratas. A barbárie consiste justamente nesse
técnico-cientificismo. A racionalidade técnica é a natureza em que se baniu o
ser humano, trata-se de uma natureza puramente abstrata, uma natureza sem vida.
Por excluir a vida subjetiva, a razão técnica não é somente uma degeneração da
cultura, mas também uma desumanidade (HENRY, 2012).
A natureza no pensamento galileano é desprovida de toda vitalidade. A ciência nos moldes impostos por Galileu realiza uma crítica radical ao mundo sensível a partir da suposição de que as propriedades organolépticas, isto é, que afetam nossa sensibilidade (olfato, audição, paladar, tato, visão etc.), não representam verdadeiramente a natureza do real. Somente uma ciência pura que prescindisse às propriedades sensíveis do mundo, poderia atingir a substância do mundo. Essa ciência seria a geometria ocupada em descrever figuras e formas em sua pureza abstraídas de todo conteúdo empírico. Desse modo, o mundo concreto que sentimos e percebemos é substituído por idealidades puras, ali onde nenhum cheiro pode ser sentido, onde nenhum som pode ser ouvido, ali onde reina um eterno e apavorante silêncio. Trata-se, pois, de um universo em que nenhuma vida é possível (HENRY, 2014).
De acordo com Husserl (2012), a
racionalidade objetivista também possui suas bases na filosofia de René
Descartes. A ontologia cartesiana entende que as propriedades que atingem
nossos sentidos indicam a existência de uma substância que não afeta nossa sensibilidade,
mas que deve ser admitida, já que os atributos sensíveis do mundo não podem
existir sobre o nada. Haveria, pois, uma substância na qual subsistiriam as
propriedades que percebemos pelos sentidos, mas que seria inacessível à própria
percepção sensível. A natureza dessa substância do mundo seria a extensão, e
seu acesso se daria, não pela sensibilidade, mas pela intelecção pura. A
extensão, sendo a verdadeira natureza do real, seria acessada, destarte, pelo
pensamento matemático. A matemática, e não a sensibilidade, nos daria o acesso
à natureza fundamental do mundo (VALENTIM, 2009).
A crítica que a fenomenologia clássica fez ao pensamento científico, dependendo de como se interpreta essa crítica, deve ser feita com ressalvas. A pandemia do COVID-19 nos ensinou que críticas à ciência em si não são corretas e podem fomentar o negacionismo científico e as pseudiciências. Aliás, há quem use a crítica fenomenológica ao cientificismo para legitimar pseudociências na psicologia, como a ontopsicologia e a constelação familiar. Ademais, mesmo na filosofia ou na psicologia, não se pode ignorar as contribuições trazidas por pesquisas e estudos que adotaram o método analítico (filosofia analítica) ou o método experimental (como o cognitivismo). Entendo que o que a fenomenologia faz bem em pontuar é uma crítica não à ciência, mas à ideologia cientificista. A ciência é válida e importante, mas não é absoluta e possui limites. O que a fenomenologia nos ajuda a entender é que a subjetividade não é completamente apreendida pelo método das ciências naturalis.
De todo modo, para o husserlianismo, o cartesianismo e o
pensamento galileano excluem a vida subjetiva sensível da experiência concreta e a
substitui pela natureza matematizável de formas e figuras geométricas. Husserl
(2012) denomina o mundo da experiência como sendo o “mundo da vida” (Lebenswelt),
trata-se da realidade concreta que experienciamos de maneira viva e imediata,
antes de qualquer tematização. O mundo da vida é o horizonte da experiência
humana compartilhada, é nele que se desenrola a nossa existência concreta,
trata-se da dimensão de evidências originárias. Seria preciso, assim, realizar
um retorno ao mundo da vida. Michel Henry (2015), o fenomenólogo francês já
citado, pontua até mesmo que é o retorno à vida que possibilita a compreensão
dos fenômenos econômicos e políticos, na medida em que é do dinamismo da vida
que a sociedade retira sua força produtiva.
Além do resgate do mundo da vida, a
fenomenologia passa por um retorno à subjetividade. Para tal, ela constrói uma
compreensão que visa superar a dicotomia sujeito/objeto a fim de não cair nem
no subjetivismo nem no objetivismo. Para o subjetivismo, tudo se reduz a
opiniões particulares sem validade universal, o que condenaria o pensamento ao
relativismo ou à redução de toda realidade a um sujeito encapsulado como no
solipsismo. O objetivismo, por outro lado, conduz à noção de que o mundo
externo existe por si mesmo independente de qualquer doação de significado
empreendida por um sujeito, perspectiva adotada pelo realismo perceptivo. Já a
fenomenologia adota o conceito de “a priori da correlação universal”,
segundo o qual sujeito e objeto são interdependentes e emergem de maneira
simultânea, isto é, não há sujeito sem objeto nem objeto sem sujeito (ZILES,
2007).
A correlação sujeito-objeto carrega
como sua marca fundamental a intencionalidade. Isso significa que a consciência
é sempre consciência de alguma coisa e que o objeto é sempre objeto para uma
consciência. Intencionalidade quer dizer direcionamento, se refere ao fato de
que o sujeito não é uma capsulada fechada, mas uma consciência aberta orientada
para o mundo. A subjetividade não é uma substância autocentrada, mas um ato de
direcionamento, um verbo. Do mesmo modo, o objeto não está lá fora existindo em
si mesmo independente de todo ato subjetivo, antes, seu próprio ser e
significado são doados por uma consciência de tal forma que o objeto existe
sempre para uma consciência (ZILES, 2007).
A compreensão da correlação
apriorística e intencional consciência-mundo será denominada pelo fenomenólogo
alemão Martin Heidegger (2012) como ser-no-mundo. Evita-se, assim, o risco de
se confundir essa correlação com a noção idealista de sujeito, bem como
realista de objeto, preferindo-se uma expressão nova que reafirme a estrutura
fundamental e indissociável entre a existência humana e seu mundo. O Dasein,
o ente que nós mesmos somos, existe sempre imerso em um mundo enquanto uma
trama de significados. Habitamos uma cadeia remissiva de sentido, somos
inseparáveis de nossa situação fática, de modo que não podemos existir isolados
do mundo nem o mundo existe independente de nós. Ser-no-mundo é uma estrutura
ontológica originária e fundamental que condiciona toda nossa experiência. (***É importante mencionar o apoio de Heidegger ao nazismo, algo que uma apropriação
crítica da fenomenologia clássica não deve deixar de destacar. Fazemos uma
referência ao heideggerianismo por seu papel na História da fenomenologia, mas
destacamos a importância de buscar referências alternativas já que ainda é
difícil mensurar a influência do nazismo em sua filosofia).
Maurice Merleau-Ponty (1996) pontua
ainda que o ser-no-mundo se constitui como uma existência encarnada,
corporificada. A consciência percebe o mundo sempre situada em um corpo.
Acessamos o mundo por meio de nosso corpo e o mundo nos afeta por meio de nossa
experiência medida pelo corpo (JUNIOR, 2002). O corpo, entretanto, não é um
dado orgânico puro, mas uma situação, de modo que ele não impõe nenhum destino
biológico inevitável ao humano. É impossível desassociar a corporeidade
das significações sociais que se constrói a respeito dela. O corpo é sempre um
corpo interpretado e seu sentido é determinado a partir da existência. Na
medida em que o ser-no-mundo é caracterizado fundamentalmente pela liberdade de
modo a não estar previamente determinado por nada, não é seu corpo que
determina o seu ser, mas é o próprio humano que dá significado ao seu
corpo, isto é, que se corporifica (PESSOA, 2015).
Foi a partir da ideia fenomenológica
do corpo como situação, que a filósofa feminista Simone de Beauvoir (1980)
questionou a construção cultural do corpo feminino e se opôs aos argumentos que
aduzem supostamente à biologia para provar a inferioridade da mulher. A
compreensão do corpo-situação pode ainda servir de base para questionarmos a
própria segmentação dos sexos bem como a naturalização do binarismo sexual como
se ele fosse um dado biológico puro. Compreender que a própria corporeidade é
socialmente construída possibilita-nos refletir também sobre a imposição de
padrões estéticos de beleza e sobre a condenação do corpo gordo como sendo um
corpo doente. A nossa relação com nosso corpo é mediada pela cultura e mesmo a
biologia não deixa de ser um acesso à natureza por meio de significações
construídas a partir de interpretações sociais (ZANELLO, 2018).
Dado, no entanto, o fato de que nos
encontramos inseridos em uma teia de significados construídos, o fenomenólogo,
a fim de desnaturalizar seu olhar, realiza uma purificação de suas
interpretações sedimentadas sobre o mundo. O primeiro passo do método
fenomenológico, conforme proposto por Husserl (2000), está em suspender, isto
é, colocar fora de circuito os preconceitos, pré-juízos e noções prévias que se
interpõem entre nosso olhar e o fenômeno. A suspensão fenomenológica ou epoché
significa uma superação da atitude natural, aquela na qual interpretamos o
mundo a partir de nossos preconceitos, em direção a uma atitude reflexiva,
aquela na qual consideramos criticamente nossas interpretações sedimentadas
sobre o mundo.
As ciências naturais partem de interpretações prévias
quando estudam seus fenômenos. Um cientista pressupõe, por exemplo, o método
experimental, a confiabilidade dos sentidos, a possibilidade do conhecimento e
a tese da existência do mundo. O senso comum, isto é, o conhecimento da
mediania cotidiana, tem o mesmo caráter, já que somos condicionados por
diversas crenças culturais. No dia a dia, tomamos como óbvias e simplesmente
dadas uma série de interpretações sedimentadas sobre a realidade. Podemos
pensar aqui, por exemplo, em todos os nossos preconceitos, nossas concepções de
mundos e ideias que aceitamos acriticamente. Essa orientação para a realidade
na qual tomamos como óbvios e dados uma série de julgamentos pré-estabelecidos,
constitui, portanto, a atitude natural (HUSSERL, 2000).
A atitude natural é, assim, aquela na qual nós nos
voltamos para os fenômenos a partir de nossas compreensões intelectivas e
intuitivas a respeito deles. A orientação natural toma, pois, a possibilidade
do conhecimento como óbvia. Essa é uma postura diante daquilo que se mostra
característica do modo como o ente humano se comporta na cotidianidade,
mergulhando na opinião pública e geral. Da orientação natural promana também o
conhecimento que caracteriza as ciências positivas, sendo que nesse campo tal
atitude é capaz de gerar determinados progressos e descobertas. A atitude
natural é, desse modo, constituída a partir de uma naturalização dos nossos
pré-conceitos a respeito dos fenômenos que a nós se mostram. Nessa atitude,
introduzimos juízos pré-estabelecidos e interpretações sedimentadas em nossa
compreensão dos fenômenos, tomando tais ideias como sendo naturais (HUSSERL,
2000).
O método fenomenológico, por outro lado, requer uma
mudança de orientação, da atitude natural em direção à atitude fenomenológica,
também denominada como atitude reflexiva ou atitude filosófica. A atitude
fenomenológica parte da compreensão de que nossos pré-juízos impedem que
entremos em contato com aquilo que se mostra tal como se mostra a partir de si
mesmo. Desse modo, faz-se necessária uma orientação reflexiva e crítica, capaz
de promover um questionamento a respeito de nossas interpretações prévias. Por
isso, de modo diferente da atitude natural, a atitude fenomenológica requer uma
abstenção da interpretação cotidiana e acrítica dos fenômenos rumo a uma
abertura sem pré-conceitos em relação àquilo que aparece (FEIJOO, 2014).
É interessante pontuar que o sociólogo francês Pierre
Bourdieu aplicou explicitamente o conceito de atitude natural conforme proposta
por Husserl para questionar a dominação masculina. De acordo com o sociólogo, a
divisão socialmente construída entre os gêneros é tomada pela atitude natural
como sendo óbvia e autoevidente. Seria a sociedade, a responsável por segmentar
as pessoas em homens e mulheres, enfatizar certas diferenças corpóreas em
detrimento de outras, ignorar semelhanças e construir uma anatomia que passa a
ser naturalizada como um dado anatômico inquestionável. Assim, a percepção das
diferenças anatômicas entre os sexos não seria uma mera constatação de
propriedades biológicas, mas a naturalização de uma divisão socialmente
construída. Daí que seria necessário aplicar a suspensão fenomenológica a fim de
superar uma compreensão naturalizada a respeito da divisão sexual (BOURDIEU,
2005).
A fenomenologia também é um rompimento coma metafísica na medida em que requer do investigador que se atenha
exclusivamente ao que se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo, sendo
necessário romper com a ideia de que haveria uma substância por trás dos
fenômenos. É nesse sentido que Husserl (2006) declarou ironicamente que os
fenomenólogos eram os “verdadeiros positivistas”, na medida em que é a
fenomenologia que se atém unicamente ao que aparece, efetuando a real e efetiva
superação da metafísica (HENRY, 2015). Sendo assim, a fenomenologia requer o
abandono da ontologia tradicional baseada na noção de substância, compreendendo
que o ser humano, em sua existência, não é determinado por nenhuma essência
prévia, devendo ser compreendido como pura possibilidade, indeterminado em seu
ser (ROEHE & DUTRA, 2014).
A fenomenologia desde seu princípio tem sido
fortemente crítica do positivismo, assim como o foram os teóricos de Frankfurt.
No entanto, embora tenha sido erroneamente acusada de ser uma metafísica, a
fenomenologia tem se oposto fortemente à ontologia tradicional, de uma forma
ainda mais radical do que os positivistas. Isso se dá porque, além de suspender
a metafísica por meio da epoché, o fenomenólogo se volta, então, para a
coisa mesma em sua evidência imediata. Para apreender a própria coisa por ela
mesma, a fenomenologia não só nega a autoridade da metafísica, como também não
admite acriticamente a autoridade da ciência. O cientista positivista, por crer
no mito da neutralidade, mantém seu olhar impregnado de concepções prévias e
até metafísicas inconscientes, já o fenomenólogo desafia tanto a metafísica
quanto a autoridade inquestionada da ciência moderna (HUSSERL, 2006).
É interessante notar como a desconstrução da
metafísica de substância promovida pela fenomenologia foi posteriormente
apropriada pela filósofa feminista Judith Butler (2010) para questionar a noção
naturalizada de identidade de gênero. Se o ser humano não é uma essência ou
substância previamente determinada, então não existe algo como uma natureza
masculina ou feminina. O ser humano nada mais é, como dizia o fenomenólogo
francês Jean-Paul Sartre (1997), que comportamento, um puro agir, e não uma
substância que age. Por isso, Butler (2010) caracteriza os gêneros como atos
performáticos que são convertidos em identidades pela operação da metafísica de
substância que toma a repetição estilizada de certos comportamentos como
evidência de uma identidade essencial.
A suspensão da metafísica e de outras interpretações
prévias, permite ao investigador a realização de um voltar do seu olhar, agora
não impregnado, para a coisa mesma. Essa reorientação do olhar foi denominada
por Husserl como “redução eidética” (HUSSERL, 1950). A fenomenologia tem como
objeto de sua preocupação uma análise descritiva das estruturas invariáveis e
essenciais dos fenômenos. Assim, a fenomenologia se distingue das ciências
empíricas por estar preocupada não com os fatos, mas com a essências ideais. A
redução eidética nada mais é do que esse retorno que se faz do fato concreto
singular em direção à essência pura e universal. Assim, é necessário purificar
o olhar de toda concepção empírica de modo a alcançar o “eidos”, a
essência pura fenomenologicamente reduzida e concebida como ideia (BERMET,
2011).
Além da redução eidética, faz parte do método
fenomenológico a aplicação da redução transcendental. A redução transcendental
é a redução fenomenológica propriamente dita e diz respeito a uma recondução do
nosso olhar para a própria consciência, é um retorno da consciência em direção
a si mesma a fim de apreender os próprios atos de conhecer. A tarefa da redução
transcendental consiste em realizar uma descrição do “a priori da
correlação intencional”. O conceito de correlação já foi aludido, mas cabe aqui
um maior detalhamento. Husserl entende
“a priori” como aquilo que está no fundamento de toda experiência antecedendo a
própria possibilidade do conhecimento; correlação como o surgimento simultâneo
de dois polos inseparáveis e interdependentes; e intencional como a
característica da intencionalidade enquanto “direcionamento”. Nesse sentido,
antecedendo qualquer existência possível, há na base de tudo uma correlação
originária entre a consciência e mundo, que se apresentam em simultaneidade e
de forma indissociável (BERMET, 2011).
A fenomenologia clássica, entretanto, tendeu a ignorar
questões sociais e críticas por entender que elas deveriam ser colocadas de
lado pela suspensão da atitude natural, enquanto toda investigação, via
reduções eidética e transcendental, deveria se concentrar nas essências puras e
nas estruturas apriorísticas da subjetividade. A subjetividade transcendental,
compreendida como o domínio de vivências puras abstraído de qualquer conteúdo
empírico, tornou-se o alvo de descrição da fenomenologia. Isso se deu porque as
estruturas da subjetividade transcendental foram compreendidas como as
condições de possibilidade de toda experiência possível. No entanto,
fenomenólogos críticos chamaram a atenção para a importância de considerarmos
os elementos sociais criticamente na medida em que eles condicionam a nossa
experiência quase tão fortemente quanto as estruturas apriorísticas da
subjetividade. Consideremos, pois, a proposta prática de uma fenomenologia
crítica.
IV.
A PROPOSTA PRÁTICA DE UMA FENOMENOLOGIA CRÍTICA
A
partir do considerado a respeito das críticas da Escola de Frankfurt à teoria
tradicional e ante o exposto a respeito do método fenomenológico clássico,
poderíamos questionar até que ponto a fenomenologia não tem se assemelhado em
alguns pontos à concepção tradicional de teoria, ainda que tenha avançado em
muitos pontos a respeito da criticidade. Os fenomenólogos têm construído um
conjunto articulado de noções que às vezes se assemelham a investigações
lógicas um tanto desprendidas do mundo concreto, especialmente no que diz
respeito às descrições das estruturas apriorísticas da subjetividade
transcendental e das idealidades eidéticas puras. Faz parte dos princípios de
fenomenologia o cuidado contra o perigo da metafísica e da racionalidade
técnica, de modo que se faz necessária uma autocrítica
Ademais, na própria história da
fenomenologia temos exemplos lamentáveis de teóricos que não foram capazes de
operar uma crítica social apropriada de seu contexto. O pior exemplo em relação
a isso, como já dito, foi o apoio dado por Martin Heidegger ao regime nazista (FARIAS, 1988).
Essa mancha na história da escola fenomenológica desvela a importância de se
considerar as limitações da fenomenologia clássica, bem como a necessidade de
investigar as potencialidades oferecidas pelo método fenomenológico para uma
realização não só de uma crítica da sociedade, mas também de uma reflexão a
respeito de seus próprios pressupostos. Além disso, os fenomenólogos podem se
abrir a um diálogo profícuo não só com a Escola de Frankfurt, mas também com as
teorias críticas em geral, como os trabalhos desenvolvidos por teorias
feministas, antirracistas, anticapitalistas, entre outras.
O teólogo alemão Paul Tillich (1984)
já havia pontuado que o elemento descritivo da fenomenologia clássica
precisaria ser complementado com um elemento existencial-crítico, fazendo-se
necessária a construção do que ele denominou como “fenomenologia crítica”. Para
ele, a fenomenologia deveria ser capaz, não só de fornecer uma descrição
suspensa de pré-conceitos a respeito das estruturas essenciais dos fenômenos,
mas também de fornecer respostas com criticidade em relação às questões
existências críticas de nosso tempo. Assim, descrever o que há de universal nos
fenômenos não é suficiente, sendo necessário refletir criticamente sobre os
condicionantes da situação fática que funciona como horizonte no qual esses
fenômenos se dão.
Um projeto mais explícito de
fenomenologia crítica, entretanto, foi proposto por diferentes filósofos e
pensadores a partir da obra 50 Concepts for a Critical Phenomenology,
que teve como objetivo extrair do método fenomenológico potencialidades
conceituais para pensar questões como padrões estéticos de corpo, pensamento
decolonial, feminismo, heteronormatividade, performatividade queer, questões
raciais, entre outras. Os mesmos autores desse livro, já haviam discutido a
noção de fenomenologia crítica em textos anteriores, no entanto, essa obra
reuniu um trabalho mais completo no projeto de reimplementação da fenomenologia
a partir de uma perspectiva crítica. A obra explora, desse modo, a aplicação de
diferentes noções da escola fenomenológica para refletir criticamente a
respeito de como as estruturas sociais opressivas condicionam nossa experiência
de mundo, requerendo dos fenomenólogos, na medida em que a fenomenologia se
atenta para as condições de possibilidade dos fenômenos, que retornem seu olhar
para uma análise emancipatória dessas estruturas. Trata-se, no entanto, não só
de uma investigação teórica, mas de uma ação prática transformadora e emancipatória
(WEISS, MURPHY & SALOMON, 2020).
A fenomenologia crítica parte da
compreensão de que toda subjetividade é uma intersubjetividade, de modo que a
subjetividade transcendental precisa ser compreendida em termos de
interseccionalidade. É preciso, pois, levar em conta o fato de que somos
ser-com-outros, que nossas singularidades não existem isoladas, de que é
necessário considerar não só as diferenças entre os diversos sujeitos, mas
também as distinções que se instauram em nosso próprio ego a partir dos
processos de subjetivação pelos quais nos transformamos. A compreensão desses
processos passa pelo entendimento de que nossa subjetividade é construída por
meio de forças culturais e de estruturas que condicionam nossa formação
enquanto pessoas. A interseccionalidade passa, pois, por uma investigação de
como raça, classe e gênero interagem de modo a constituir quem somos (DAVIS,
2020).
O elemento descritivo da
fenomenologia, entretanto, também desempenha um papel essencial para a crítica.
É necessário descrever os fenômenos sociais a partir deles mesmos, em um
primeiro momento, deixando fora de circuito por um tempo conceituações prévias.
Isso nos permite abrir um horizonte no qual a realidade pode se desvelar tal
como ela é em si mesma. No entanto, isso que se mostra não é uma construção de
ideias a serem encadeadas em um sistema lógico, não se trata de uma construção
psicológica, nem de uma abstração vazia de mundo. Por outro lado, também não se
trata de uma descrição objetiva de uma externalidade que se mostra em uma
verdade independente de nós. A suspensão fenomenológica não pretende abolir o
preconceito subjetivo para desvelar uma verdade objetiva. Tanto o subjetivismo
quanto o objetivismo são perigos que o fenomenólogo busca evitar (DAVIS, 2020).
Um conceito articulador fundamental
do método fenomenológico é a intencionalidade, que nos chama a pensar a
subjetividade, não como uma ilha isolada, mas como uma abertura sempre em
diálogo com o mundo. Para a fenomenologia crítica, a suspensão de nossos
preconceitos habituais deve ser uma via de acesso, não a um domínio puro
isolado de toda experiência fática, mas ao mundo da vida real e concreto. As
estruturas essenciais que constituem o mundo enquanto horizonte de luz no qual
os fenômenos se desenrolam são reveladas no contexto da intencionalidade. A
abertura intencional de nossa consciência situada sempre em um mundo fático é o
que torna possível uma fenomenologia interseccional, que desvela nosso
engajamento no mundo concreto da práxis social (DAVIS, 2020).
As estruturas sociais condicionam de
tal forma nossa experiência que são, segundo GUENTHER (2020),
quase-transcendentais ou “q-transcendentais”. É verdade que não se pode dizer
que estruturas e dispositivos sociais que condicionam os processos de subjetivação
sejam propriamente transcendentais, pois não são estruturas a priori que
precedem toda experiência empírica. No entanto, visto que nascemos em uma
sociedade patriarcal, heteronormativa e na qual a branquitude é o padrão,
torna-se impossível desvincular nossa constituição enquanto sujeitos e nossas
experiências dessas estruturas que de antemão nos condicionam, Os dispositivos
de subjetivação de nossa cultura organizam e reproduzem nossa vida cotidiana e
os preconceitos que assumimos na atitude natural, ainda que se tratem de
estruturas sociais e contingentes.
No entanto, tais estruturas
“q-transcendentais” não são deterministas. A fenomenologia tem um forte
compromisso com a noção de liberdade e responsabilidade. Não somos aquilo que
esses condicionantes históricos fazem de nós, mas somos aquilo que escolhemos
livremente ser dadas essas estruturas (SARTRE, 1997). Desse modo, nosso próprio ser nos convoca a
assumir a responsabilidade pela trajetória existencial pela qual orientamos o
sentido de nossa existência. Responsabilidade não quer dizer escolha absoluta
abstraída de condicionantes, mas sim a capacidade que cada um de nós possui de
responder por quem se é (MERLEAU-PONTY, 1996). É importante, no entanto, entendo, questionar alguns limites da noção de liberdade em algumas leituras da fenomenologia existencial, nossa liberdade nunca pode ser pensada como tão radical e nossa constituição tão nadificada e indeterminada, que se ignore a materialidade, temos um código genético, nascemos num lugar, numa cultura, numa dada economia e sociedade e não podemos ignorar o papel desses condicionantes na nossa constituição.
De todo modo, a importância de frisar a responsabilidade
está em que ninguém pode ser machista, homofóbico ou racista escusando-se
dizendo que foram as estruturas sociais que determinaram essa sua forma de ser.
Do mesmo modo, todos nós somos responsáveis pela sociedade que construímos e
que nos constitui. Somos responsáveis por produzir formas de superação das
estruturas de opressão e de lutar pela transformação social. Por exemplo, a
ordem heteronormativa não cria um destino inevitável, nem desculpa aqueles que
promovem o ódio contra a comunidade LGBTQIA+. Do mesmo modo, a estrutura da
branquitude não condena inexoravelmente o homem branco ao racismo, nem o
absolve da responsabilidade de ser crítico em relação à supremacia branca.
Nosso lugar social nos condiciona, mas não nos determina. Trata-se de
contingências, não de destino (GUENTHER, 2020).
No entanto, essa noção de liberdade
não deve ser pensada no sentido da liberdade iluminista e liberal. Não se
refere a ser livre da intervenção do Estado ou a um individualismo que pensa a
autonomia como um valor supremo em oposição à opressão que teria um caráter
sempre coletivo (BERLIN, 1981). O liberalismo construiu uma ideia de liberdade
negativa, propiciada apenas pela ausência da intromissão de ações estatais,
enquanto uma filosofia genuinamente libertadora deve trabalhar a partir da
concepção de uma liberdade emancipadora no sentido da ampliação de nossa
capacidade de ação (BAUMAN, 2001). Para a fenomenologia crítica, somos agentes
autoconscientes, responsáveis e livres, mas nossas escolhas são sempre situadas
em um mundo, entendido como o contexto significativo em que nossa liberdade e
nossas ações se desenrolam (MCMAHON, 2020).
A fenomenologia crítica faz,
portanto, uma escolha por um modo de ver o mundo. Ela constrói reflexões que
ajudam a desconstruir interpretações sedimentadas a respeito do lugar da
mulher, do que é considerado normal ou patológico, do modo econômico de
produção e reprodução da vida, daquilo que é tido como moral ou imoral, e assim
por diante. Opera-se, assim, uma epoché radical, que requer a destruição
das estruturas vigentes de opressão e a construção de formas transformadoras de
ver e agir no mundo. O escrutínio crítico deve, pois, complementar o elemento
descritivo da fenomenologia. De acordo com Guenther (2020), o objetivo
principal da fenomenologia crítica consiste não apenas em interpretar o mundo,
mas agir de modo a transformá-lo.
É importante pontuar que o projeto
de uma fenomenologia crítica está em aberto. A fenomenologia nunca pode ser uma
teoria, pois ela se constrói justamente a partir da suspensão do pensamento
teórico a favor de um contato imediato com a experiência viva no mundo. Por
isso, seus conceitos e interpretações são sempre provisórios, não por causa de
um relativismo ingênuo, mas devido à crença fundamental de que o mundo está em
constante transformação requerendo sempre a construção de novos olhares. Isso
se dá porque o próprio ente que nós mesmos somos não se encontra determinado,
sendo sempre inacabado. O projeto de uma fenomenologia crítica, assim como o
ser humano e o mundo, é uma abertura que se constrói no desenrolar dinâmico da
vida (SALOMON, 2018).
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fenomenologia crítica consiste na
proposta de unir o elemento formal-descritivo da fenomenologia clássica com o
elemento social-dialético da Teoria Crítica (e das “teorias críticas”). Para
tanto, ela faz uma autocrítica à presença de elementos da teoria tradicional
presentes na escola fenomenológica, apropriando-se das críticas que a Escola de
Frankfurt fez à razão instrumental e à concepção teórica articulada enquanto um
sistema lógico-conceitual. A incorporação do elemento crítico permite uma
reimplantação da fenomenologia, de tal forma que ela possa servir a uma práxis
emancipatória e transformadora da realidade social. Ademais, a fenomenologia
crítica pode fornecer elementos potenciais para uma prática política engajada,
não somente por dialogar com teorias como o feminismo, o antirracismo e as
abordagens de gênero, mas também por fornecer um arcabouço conceitual profícuo
que pode para abrir novas e potentes direções para a reflexão e ação no mundo.
No entanto, a maioria do que se tem
publicado sobre fenomenologia crítica se encontra em língua inglesa, sendo
preciso tornar conhecida a proposta de tal empreendimento também no Brasil.
Isso possibilitaria com que pudéssemos aplicar as contribuições da
fenomenologia crítica para pensar e refletir sobre questões políticas e sociais
próprios da realidade de nosso país, considerando as idiossincrasias das
problemáticas presentes em nossa cultura. Portanto, intenta-se com este artigo
lançar as bases para que a proposta fenomenológica-crítica seja conhecida e
empregada em nossa língua e em nossa realidade específica, bem como para que se
desenvolvam mais trabalhos discutindo e ampliando a proposta prática de uma
fenomenologia crítica.
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